4/13/2006

Malone

Da primeira vez que peguei n' O Inominável não estava pronto para o segurar nas mãos. Estranhei-o, primeiro, e não lhe liguei nenhuma, logo de seguida. Como acontece com muitos dos volumes que se espalham pela casa com marcadores que, de tão esquecidos, já não marcam coisa alguma, O Inominável deve permanecer lido e devidamente ignorado algures até à vigésima página. Quem diz vigésima diz trigésima, tal como poderia dizer quinta ou sexta. No fundo, está por ler e é isso que importa.

Mais recentemente, cruzei-me de novo com Beckett numa livraria qualquer. Sem pudor nem censura, pensei "acho que conheço este gajo" e ainda hoje sinto algum desconforto por isso. O título do livro, Malone Está a Morrer (Malone Meurt, no original), ficou-me na cabeça. "Mas o que é que um gajo que está a morrer tem de interessante?" Desinteressado, comprei.

Devo ter demorado mais de um ano a ler aquelas 170 ou 180 páginas. E só as lia durante viagens longas de comboio, especialmente Lisboa - Porto e Porto - Lisboa. Malone Está a Morrer não é apenas uma obra de génio. É o refúgio, a alienação que qualquer ser humano procura. É a cabeça decrépita de um velho inapto, incapaz, acamado, indagador e divagador. É aquilo que qualquer pessoa consegue ser.

Durante as muitas estações - as do ano e as de comboio - que a leitura de Malone atravessou, fui viajando por dentro da sua e da minha humanidade singela, com toda a maldade, desprezo e compaixão que um ser humano é capaz de ter e sentir. Beckett percebeu e soube explicar que uma pessoa pode ser apenas aquilo que Malone foi - ou ainda é; não garanto que Malone tenha morrido de facto. A verdade - e era isto que queria dizer desde o início do texto, mas entretanto perdi-me - é que nunca quis acabar de ler este livro e é bem provável que volte a lê-lo. Mas só depois de encontrar O Inominável. Julgo que talvez o leia também.




Hoje comemoram-se os cem anos do nascimento de Samuel Beckett.