4/14/2006

Combater o tédio e a impaciência

Quando era criança costumava sentir tédio. Hoje procuro essa mesma sensação mas já não consigo. Quando muito sinto impaciência nervosa, como aquela se sente ao ver um mau jogo de futebol, mas nunca o tédio, esse não.
O meu tédio tinha razões de ser. Passava intermináveis fins de semana num pequeno casal (o Casal Sobrigal), numa aldeia chamada Carreiras, a 12 km de Torres Vedras, onde nem sequer telefone tinha e o meu computador, um avançadíssimo Schneider Euro PC, ficava a hibernar no apartamento de Torres Vedras.

Os amigos, no Casal Sobrigal, eram poucos mas bons, só que por vezes não estavam em casa, recrutados para os trabalhos agrícolas ou de restauração na Quinta do Hespanhol.
Quando tinham folga, por exemplo ao Domingo, iam visitar a família ou iam à missa, ou iam, imagine-se, à praia… Os meus pais faziam tudo ao contrário, e não sem algum sentido de lógica. Ao Sábado íamos à praia umas horas, passando pelo Intermarché outras tantas horas, e no Domingo, ficávamos em casa, pois havia filas intermináveis para ir para a praia. Acresce que os meus pais não eram católicos (e eu, curiosamente, também não), o que nos arredava da participação activa das festas religiosas e da missa, o ponto alto de convivência social da aldeia.

Para mais, ao Domingo, mesmo no Inverno, os meus amigos vestiam-se a rigor e não estavam propriamente virados para uma futebolada no empedrado da rua, sob pena de saírem do campo por ordem imperativa das mães, suspensos pelas orelhas.
Não pensem que esta situação se alterou depois dos meus 15-16 anos.
Continuei sempre a sentir tédio, até tirar a carta de condução, aí aos 23, que me permitia, simplesmente, fugir!

Mas até bem tarde, e sempre que ficava naquela espécie de sanatório-misto-de-exílio-rural, não me sobrava outro remédio senão remexer nos livros da minha mãe e procurar coisas que não agravassem ainda mais o meu tédio. Por isso tinha que escolher muito bem os livros. Nada de Prousts e À La Recherche du Temp Perdu. Já agora, o livro que mais assentou na minha situação foi precisamente A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Eu no cadeirão de praia de fibra sintética do Intermarché, e o Hans Castorp na sua excelente chaise longue do sanatório na montanha, ambos convalescentes.

A literatura era uma questão de sobrevivência mental.
Tiveram de passar alguns anos até que voltasse a ler de forma regular e diária.
Agora tenho a sorte de passar quase três horas por dia em transportes públicos, de Torres Vedras para Lisboa, onde trabalho, e depois de Lisboa para Torres Vedras.
Tentem não sentir inveja de mim, por ter essas três horas numa cadeira confortável, enquanto o meu chofer particular me conduz pela A8.

Não leio para combater o tédio, mas sim a impaciência de uma viagem longa.
O tédio, esse, nunca mais o senti, e isso explica porque ando a ler o Livro do Desassossego há mais de um ano e ainda vou a meio.