5/11/2006

Identidade e origem

Chamei Identidade e origem a isto, mas os termos até podem não ser exactamente estes. De qualquer modo, a obsessão pelo rigor pode entorpecer o discurso, pelo que vou tentar saltar esta parte o mais depressa possível, antes que o leitor desista do texto. Supondo que há um leitor.

Dantes, há muito, muito tempo. Ou talvez nem fosse há tanto tempo assim, já que eu ainda não contabilizo propriamente uma enormidade de Primaveras. Há algum tempo, digamos. Naquela idade em que estamos a caminho da adolescência mas ainda agarrados à infância. Mais coisa, menos coisa. Por essa altura, dizia eu, havia uma pergunta que, quando me era dirigida, causava transtorno. "De onde é que és?" E eu ficava assim, sempre na dúvida. Ser, ser, eu tinha a impressão que era de Mafra. Porém, asseguravam-me que havia nascido em Torres Vedras. Pode parecer uma situação menor, mas a mim fazia confusão. Nascera em Torres Vedras porque se usava, na época, que os bebés da zona fossem a Torres Vedras ser nascidos. E eu não era excepção: a minha mãe estava com contracções, o meu pai pegou nela e levou-a à maternidade "vamos para Torres", disse ele ansioso, um tanto atrapalhado e meio emocionado por estar à beira da experimentação do exercício de paternidade. E fomos, os dois mais eu, que na altura ainda não contava para nada em termos numéricos. Portanto, nascer em Torres Vedras foi mais uma inevitabilidade, uma consequência simples do formato de administração regional do que uma escolha ou um capricho dos meus pais. É curioso notar que este assunto ainda se mantém actual; e é de estranhar que o tratem como se fosse novidade - "ah, agora as crianças não vão poder nascer onde os pais querem". Acreditem, foi o que me aconteceu há 26 anos atrás. A mim e, seguramente, a uns bons milhares de outros que, como eu, nessa tal idade de indecisão, não sabiam dizer de onde é que eram. Daí que a minha resposta fosse singela e sincera, embora um pouco extensa "nasci em Torres Vedras mas vivo em Mafra desde que nasci". Desde umas horas mais tarde, em bom rigor. Cá está o rigor outra vez.

Passaram-se uns tempos e decidi que, para o mal e para o bem, mesmo correndo o risco de não ser preciso na resposta ou de desvirtuar as inscrições da certidão de nascimento, seria de Mafra daí em diante. E assim fui. Assim fui sendo de Mafra, entenda-se. Durante vários anos. É fácil perceber porquê: a minha relação com a escadaria do Convento ou com as árvores do Jardim do Cerco era incomparavelmente mais estreita, próxima e carinhosa do que a outra, fria e distante, que resultava da breve passagem por determinado berço público torreense.

Mais anos se passaram e eu andava confortável com a situação. Sou de Mafra, pronto, não vale a pena especular, voltar ao assunto, remexer no passado. Afinal, ninguém tem que saber que nasci em Torres. Praticamente ninguém sabe e não é coisa que faça questão de tornar público, embora também não tenha razão para me envergonhar do sucedido. Tudo estava bem até que, no fim-de-semana que passou, viajei até Braga, cidade de que muito gosto - por acaso, não é para dar graxa aos bracarenses, mas gostava de ser de Braga. A sério. Era de música que se tratava e eu, juntamente com os outros dois elementos de Feromona, tínhamos compromissos a honrar e novos públicos para conhecer, pelo que nos fizemos à estrada a caminho de 800 quilómetros em 24 horas (ida e volta, claro), para cerca de uma hora de actuação e um punhado de euros. Mas, nestas coisas, o que nos move não são os euros. No caso, foi um Ford Mondeo - bem confortável, por sinal. Onde é que eu ia?...

Ah, Braga. Quando chegámos ao sítio combinado, fomos recebidos por pessoas que ainda não conhecíamos pessoalmente. "Pois... vocês têm ar de quem vem de Lisboa", a tirada foi pronta e veio revestida de simpatia e alguma provocação - bem disposta, bem humorada, acolhedora. Sim, éramos nós, de facto, e vínhamos, exactamente, de Lisboa... e foi aqui que eu comecei a pensar "mau... mas tu queres ver que?..."

Mais tarde, em conversas de quem se está a conhecer, trocando impressões de um lado para o outro com os companheiros de música que tiveram a gentileza de nos receber - e que bem receberam! -, temi que a pergunta surgisse novamente, quinze anos depois de eu ter arrumado a questão. E eis que surgiu "és de onde? Mesmo de Lisboa?". Não creio que me tenha arrepiado. Porém, não garanto que não tenha ruborescido um pouco. "Bem, eu..." A verdade é que não sabia o que dizer. Não, de facto, de Lisboa não era. Não sou. Não foi aqui que nasci. Não foi aqui que cresci. No entanto, oito anos na zona antiga da cidade, fazem com que eu sinta desconforto em dizer "ah, não... vivo lá mas sou de Mafra". Soa um pouco a pequena traição. No mínimo, soa a desconsideração por este sítio que adoptei e que, à sua maneira, me adoptou também. No fundo, e se eu usasse o mesmo critério que usei há quinze anos, a minha relação com a escada irregular da Travessa da Pereira ou com a inclinação tortuosa da Voz do Operário (de madrugada) ou com a placidez do adro de Santo Estêvão é hoje bem mais próxima e fraternal do que a que me resta, na memória, dessa outra com as escadarias do Convento ou com as árvores do Jardim do Cerco. Por outro lado, aplicar assim esse critério seria desconsiderar as minha queridas raízes... Caramba, não se pode ser dos dois sítios?