5/08/2006

o vento nas árvores

Afastava-me muito de casa na aldeia, com a minha IBA, uma bicicleta vermelha de fabrico português, cujos pedais não tinham posição de repouso, andavam sempre, e para travar tinha de fazer força com as pernas. Por vezes, quando em alta velocidade, escapava-me um pé do pedal e as minhas pernas eram violentamente açoitadas até a bicicleta parar.
Um dia afastei-me demais, com os meus amigos Luís e Marco. Passámos a famosa Quinta do Hespanhol, o campo da bola do Casal do Sol, onde aos domingos havia pancadaria estilo aldeia gaulesa, e seguimos, para oeste, por uma estrada de terra batida coberta de pó vermelho, resquícios das primeiras plantações de eucalipto. Os caminhos de campo daquela zona de charnecas e vinhas, têm todos uma coisa em comum. Sulcos de tractores. Só os tractores as usam, e por isso, no Inverno, as pesadas rodas escavam dois profundos sulcos na estrada. Os sulcos são por vezes tão largos que podemos pedalar lá dentro, mas a arte consiste em pedalar ao meio, onde a estrada é lisa, evitando cair.
Quanto mais nos afastávamos da civilização, mais os sulcos se afundavam na lama vermelha, seca, ainda com os rastos da última passagem de tractor. As planícies altas estendiam-se por todas as direcções, com algumas ovelhas inglesas, aquelas com a cabeça preta e o pêlo branco, uma importação excêntrica do proprietário da Quinta do Hespanhol muito badalada nas conversas no café do Luís Charuto ou do Rui.
E nisto, eis que surge, no horizonte, uma pequena mata de pinheiros mansos, como uma ilha. Avaliámos a distância com os binóculos de ópera que eu levara de casa.
Marco, o mais velho e maior, com a sua t-shirt do Flash Gordon que trouxe de França, é que dava as ordens. E aí, a ordem foi de fazer meia volta. Aquele objectivo não constava do nosso território de jurisdição. Era demasiado distante. A noite, apesar de ser Verão, estava a cair e os nossos pais já estariam preocupados e à nossa espera para jantar. Eu, naturalmente, discordei, e o Luís, que era o mais novo e que sempre que havia alguma asneira para ser feita estava na linha da frente, também. O Marco não se convenceu e optou por fazer meia volta.
À medida que o via afastar-se de nós, deixando um rasto de poeira com a sua BMX, parece que sentia olhos na escuridão da floresta, aguçando o apetite, afiando as garras e os sentidos, dando um alerta geral. Ouvimos uma coruja piar e ouvimos, apesar de não a vermos, as suas asas imensas a bater.
Virámos as palas dos bonés para a frente, algo que só fazíamos à noite por medo de ir direito a uma teia de aranha (eu era aracnofóbico e ainda sou um bocado). Seguimos, em direcção àquela misteriosa floresta. O caminho, naturalmente, acabava mesmo na sua orla. Mal o Sol mergulhou para lá do horizonte, o vento soprou do mar, agitando as árvores como uma tempestade ameaçadora. Nunca tinha ouvido algo tão assustador como o barulho das árvores à noite, no meio do nada, nem o mar, em dias de marés vivas, soa assim.
Eu e o Luís fizemos meia volta a pedalar a toda a velocidade. Não conseguia olhar para trás. Era muito mais escuro do que me tinha apercebido e mal mergulhámos no vale, por entre os eucaliptos, tornava-se difícil ver bem o caminho. Víamos morcegos a voar, daqueles que saiem das suas grutas depois do lusco-fusco. E um fio de uma teia de aranha, ou talvez uma erva, passou-me pela cara, e os meus pés descoordenaram-se e saíram dos pedais e o acidente foi inevitável, saí da estrada numa curva e fui-me enfiar num campo de terra batida, espalhando-me ao comprido. O Luís nem esperou, continuou a pedalar, mas não perdia pela demora pois dali por uns 300 metros também ele se espetaria no sulco de um tractor. Quando passei por ele já se levantava e preparava para pedalar.

Cheguei a casa já de noite e fui acolhido com notável indiferença pelos meus pais, aparte um ralhete pelas horas. Nem um comentário pelo meu ar esbaforido, pelas pernas vincadas de nódoas negras e esfolões ou pela camada de pó que me cobria. Penso que o meu aspecto assim era comum no fim dos dias de Verão daqueles tempos.
Pergunto-me o que aconteceria se hoje aparecesse assim em qualquer lado. Será que alguém reparava?