5/04/2006

sentido de obrigação

Quando vivia em Sta. Apolónia, por vezes deixava o meu carro no parque do museu Militar porque não arranjava lugar em mais lado nenhum. Depois das 20h fechavam-se os pesados portões verdes e aquele pedaço de asfalto, do lado de fora, cercado por correntes vermelhas e brancas, era devolvido à predação pública.
O soldado de serviço, impecavelmente fardado de verde e boina preta, era rapidamente substituído pelo arrumador daquele fuso horário (eles iam-se revezando). E lá estava, um tipo de gorro azul, seboso, beata fumegante, de ar expedito e servil, a apontar para um parque vazio, perante o olhar algo vexado do tropa de serviço, a espreitar por cima do ombro.
A indicação do arrumador era inútil para os locais como eu que, mesmo assim, pagavam 50 cêntimos todos os dias do ano para estacionar à porta de casa. Esses 50 cêntimos eram rapidamente convertidos em copos de três mas a mim faziam-me sentir uma espécie de Madre Teresa da rua dos caminhos de ferro.
Tinha era de tirar o meu Ford Escort de lá antes das 8 da manhã, antes do museu reabrir e vir uma enchente Citroen AX verde tropa, e alguns carros de melhor aspecto, como um ou outro BMW, sobras de algum ministério. Curiosamente, tirei quase sempre o carro antes das 8. É preciso que se diga que nos outros dias eu acordava tarde. É que eu, de costume, acordava primeiro às 8:30 e depois usava o snooze de 10 em 10 minutos até às 9:30, sintonizado na antena 1, saltava da cama, fazia a barba ao mesmo tempo que lavava os dentes e tomava banho, e depois guiava pelo trânsito de Lisboa como um condutor de ambulância sem ambulância.

Foi aí que compreendi o poder do sentido de obrigação para controlar o sono.
Então decidi começar uma experiência estóica. Deixava o carro de propósito no parque do Museu Militar no dia anterior porque assim era forçado a tirá-lo de lá antes das 8h e chegava ao trabalho antes das 8:30, supreendendo as mulheres da limpeza agarradas ao telefone dos chefes a fazer chamadas para a família em angola (jurei segredo).

Desisti da ideia no dia em que saí da cama às 6:45 da manhã, em pleno Inverno, vesti roupa por cima do pijama, fui até ao carro no parque do Museu Militar, desembacei os vidros, aqueci o motor, saí com o carro, procurei outro lugar na minha rua, estacionei depois de complicadas manobras, saí do carro, entrei dentro de casa, despi a roupa e voltei para a cama e adormeci.
Nesse dia, cheguei mesmo atrasado.
O meu esquema era falível e fiquei muito desiludido, como devem imaginar.
Mas isto do sentido de obrigação funciona, tenho a certeza que sim, é preciso é a obrigação ser mesmo obrigatória.