4/14/2006

Ah, Mia Couto, que me andaste a enganar!

Fiz uma das minhas figuras mais tristes quando, finalmente, fui a África, a Maputo. Mas isso conto depois, agora os antecedentes.
Nunca pus os pés em África, sequer em Marrocos. Na infância nunca tive nada a ver com África, nunca tive família a colonizar a África, fosse militar ou civil, nunca beneficiei de África; a África, no fundo, nunca me disse nada, nem eu a ela. Enfim, só aquelas coisas da escola, a história, o Camões, o Gungunhana, o Serpa Pinto, desculpem, apenas nomes. Nos meus 8-9 anos conheci, isso sim, numa quinta de Chaves, uma gente muito rica de Angola, a que nós chamávamos os pretos, desculpem, e não posso esquecer o carinho com que aquela senhora diferente, porque mulata, cúmplice e calorosa, nos fazia e nos dava as sandes de marmelada com queijo e o sumo fresco, era no Verão. Depois, à noite, apaixonei-me sem consequências pela pretinha Camília. Era uma menina tão fresca que ainda cheirava a lá fora depois de estarmos uns dez putos a jogar o loto durante duas horas no quarto abafado da avó que andava em viagem. E eu muito corado, sempre ao pé dela. Aos 8-9 anos não se falha na apreciação sentimental das pessoas e das coisas, e para eu ter guardado na memória a cena das sanduiches... E, quanto a África, era tudo, tirando o facto de ser nossa, isso toda a gente veio a saber vagamente mais tarde quando apareceram uns terroristas, mesmo nossos, na nossa África, o que já não era tão vago porque começaram a matar os nossos soldados e não tardou a haver certos dramas nas famílias conhecidas. Aos 12-13 anos, eu e outro galfarro da minha idade cometemos um acto tão grave de banditismo que, com medo das respectivas famílias, decidimos fugir para França, e não para África. Não passámos do posto fronteiriço, a 9 quilómetros de Chaves, depressa nos foram buscar de táxi. Foram passando os anos da parva adolescência, chegou a juventude e eu, para fugir de África, fugi para França. Em França sim, conheci muitos africanos e africanas. Mas, de África, continuava a ser tudo. Deu-se o 25 de Abril, voltei a Portugal, não arranjava trabalho porque tinha prioridade a vaga de retornados, desculpem, já que haviam chegado de África com as mãos a abanar, e era justo, era o preço a pagar pela colonização e respectiva descolonização. Fugi para França.
Farto de fugas, encontrei lugar em Portugal, já quase grisalhadultando ligeira e respeitavelmente das têmporas (ah, Mia Couto!) e, como toda a gente, resolvi ser escritor. Falhei porque não sabia nem sei escrever à escritor, e tinha mais que fazer – trabalhar, por exemplo –, mas, sobretudo, porque me faltava o elemento África imprescindível, aqueles pores de sóis, aquele nosso virar para fora da nossa identidade, e ainda por cima o meu ídolo era António Lobo Antunes que respira África por todos os poros. Nada a fazer, mas confesso que guardei um rancorzinho a África por ela não se me dar a conhecer e me impedir de singrar como escritor. Mas até esse rancorzinho passou quando vim a saber que pessoas que muito estimo, como a senhora Bárbara Guimarães e a senhora Maria Rueff, afinal eram africanas.
Jurei então que havia de ir a África, que havia de colmatar esta lacuna, abafar este sentimento de culpa, e preparei-me, decidindo fazê-lo o mais turisticamente e o menos colonialmente possível, embora não desconhecesse que o turismo era uma forma de colonialismo moderno. Como turista despercebido fui, então, a Moçambique, Maputo.
E foi em Maputo que fiz uma triste figura. Tinha-me preparado para ir o mais amigavelmente e o menos colonialmente possível. E como me preparara eu? Pois bem, tentando haurir o português de Moçambique dos livros do moçambicano Mia Couto, logo-logo relenlendo-o e me rendendo. Depois, lá aterrado, desalfandegado e com os tudo-em-ordem na carteira descansada, era só comunicar com os moçambicanos de olhos no coração e o dito nas mãos, pensava eu. Logo nas formalidades meti água ao declarar que passapapel é bom porque fronteira arde como o dito e tu passas por cima. O olhar dos alfandeguistas só dizia «olhó maluco». Devo dizer antes de avançar que no avião eu mamara maningue uísque não só da companhia mas do frasco achatado que trago no bolso traseiro porque: quem não tem medo de voar? Lá passei, mas o pior foi no hotel.
Abrevio: riram-se de mim abertamente quando disse «boas as tardes e tudo bem mas há um porém: toda a minha bagagice me sumiu». Mia Couto, meu satanhudo, não és culpado de tudo, já Guimarães Rosa, o cafageste, me fizera passar por vergonha semelhante quando fui visitar o Nordeste brasileiro e me pus a falar com os nordestinos talqualmente ele escrevia. Bem, as gerências e as empregâncias do hotel não me entendiam e eu não os entendia já que me falavam, parece, em inglês. Usámos então a linguagem do coração e do álcool, e também da gorja forte, num português menos bem amanhado do que o de Mia Couto, e lá nos entendemos e convivemos. De Moçambique gostei, é um país, tem o carácter de um já país, embora pobre e embora nas machambas, que também fui ver, a realidade da coisa não corresponda à solenidade da palavra. É um país mas não é para turismo, apesar da Ilha de Moçambique, e quem viu um pôr de sol viu todos, é antes um país para viver e para isso é preciso ser-se de lá ou tornar-se gente de lá, coisa que os cooperantes, com quem também me enfrasquei repetidamente, jamais alcançarão porque são ricos, peço desculpa. Para o ano vou a Cuba, mas digo já que, para gajas, o Brasil é o melhor.