4/22/2006

Mandelstam vê assim a pintura

Extractos de Os Franceses, texto do poeta russo Óssip Mandelstam. Nasceu em 1891 e morreu num campo prisional de trânsito em 1938, de fome, de distrofia. Não existe o túmulo dele (uma vala comum? Um buraco na terra?); no lugar do ex-campo de trânsito erguem-se os novos bairros habitacionais de Vladivostok.
Filipe Guerra



Van Gogh, Le cafe du soir

Viva, Cézanne! Avozinho simpático! Grande trabalhador. A melhor bolota das florestas francesas.
A pintura dele é autenticada por notário aldeão sobre uma mesa de carvalho. Inabalável como testamento lavrado no pleno uso da consciência e faculdades.
Por mim, fiquei encantado com uma natureza-morta do velho. Rosas cortadas, pelos vistos, de manhã: densas, apertadas, sobretudo novas, sobretudo rosas-chá! Tal qual as bolinhas do gelado de natas amarelo.

Mas tive cá uma aversão ao Matisse, esse pintor de ricos. A tinta vermelha das suas telas escuma como bicarbonato de soda. Desconhece a alegria dos frutos a amadurar. O seu poderoso pincel não cura a vista, mas comunica-lhe uma tal força taurina que os olhos se raiam de sangue.
Esse xadrez de carpete e essas odaliscas!
Caprichos de xá chez le maître parisiense!

Henri Matisse, Danseuse dans le Fauteuil, sol en Damier, 1942

As baratuchas tintas leguminosas de Van Gogh desgraçadamente compradas por vinte sous.
Van Gogh escarra sangue, como suicida dos quartos mobilados. As tábuas do chão no café nocturno inclinam-se e fluem como calha em fúria eléctrica. A estreita tina do bilhar lembra o cepo do caixão.
Nunca vi um colorido a ladrar como este.
E que paisagens – de hortas e revisores de comboio! Acabaram de limpá-la da fuligem dos comboios suburbanos com um trapo molhado.
As telas de Van Gogh, que a omoleta da catástrofe lambuzou, são didácticas como material escolar – mapas da escola Berlitz.

Os excursionistas movem-se a passinhos curtos como na igreja.
Cada compartimento tem clima próprio. No de Claude Monet, o ar é do rio. Ao olhares para as águas de Renoir sentes nas mãos as bolhas e os calos dos remos.
Signac inventou um sol de milho.


Renoir, La Seine

A explicadora dos quadros leva atrás dela amadores de cultura. Ao vê-los, dirás: há ímanes que atraem patos.
Ozenfant inventou algo de surpreendente – com giz encarnado e lápis branco em fundo preto de ardósia – ao modelar formas de vidro soprado e de loiça quebradiça de laboratório.

Também lá estão a fazer vénias o judeu azul de Picasso e os boulevards cinzentos e carmesins de Pissarro rolando como bolas de uma lotaria enorme, as caixinhas de cabs, a levantarem canas de chicotes, e com nesgas de miolos espalhados sobre quiosques e castanhas.
Não chega?
À porta, já uma generalização se aborrece.

Gostaria de recomendar a todos os remanescentes da inofensiva peste do realismo ingénuo esta maneira de ver os quadros:
Nunca entrar no museu como numa capela. Não enlanguescer, não petrificar, não se colar às telas...
Andar como de passeio num boulevard – através!
Rachar altas ondas temperaturais no espaço da pintura a óleo.
Calmamente, sem excitação – à maneira dos tartarozinhos quando dão banho aos cavalos em Aluchta – mergulhe o olho naquele meio ambiente novo para ele – e lembre-se de que o olho é um animal nobre mas teimoso.
Ficar parado diante de um quadro com que ainda não se sincronizou a temperatura corpórea da sua vista e para a qual o cristalino não achou ainda uma acomodação simplesmente digna – é o mesmo que uma serenata de peliça vestida e atrás de janelas duplas.


Camile Pissarro, Boulevard Montmartre

Quando este equilíbrio for alcançado – só então – comece a segunda etapa de restauração do quadro, a da limpeza, a da purificação quando se lhe raspa a escuma velha da bárbara camada exterior que o liga, como a qualquer outro objecto, à realidade ensolarada e condensada.
O olho, que tem capacidade acústica [...] eleva o quadro até ao seu nível verdadeiro, porque a pintura é muito mais um fenómeno de secreção interna do que uma percepção externa.

O olho-viajante entrega à consciência as suas cartas credenciais. Estabelece-se então entre o espectador e o quadro um tratado frio, uma espécie de segredo diplomático.
Saí da embaixada da pintura para a rua.
A luz do sol, logo após os franceses, pareceu-me em fase de eclipse minguante, e o próprio sol me pareceu envolto em papel metálico. Súbito começa a última etapa da percepção do quadro – a acareação com o desígnio artístico.
À porta da loja cooperativa estava uma mãezinha com o filho. O filho era tabético e respeitador. Ambos vestidos de luto. A mulher enfiava um molho de rabanetes no ridicule.
O fundo da rua, como que esmagado por um binóculo, enroscou-se numa bolinha, e tudo isto – distanciado e falso – foi atulhado numa bolsa de malha.

1931


Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra