4/18/2006

Os ídolos e a arte de agora

Longe de mim ser um fundamentalista conservador quanto a princípios que regem e definem a arte, a criação ou o objecto artístico. Tenho as minhas convicções, umas mais arrogantes, outras mais permissivas, mas não o arrojo suficiente para afirmar em tom absoluto "isto não é arte". Há coisas que acho que são, outras que nem por isso. Depois existem outras coisas que são unanimemente aceites como objectos paralelos, situando-se num campo que contém elementos artísticos, concedo que sim, que pode acontecer, mas que assentam sobretudo num conceito de entretenimento, sem mais ambições. Até aqui, parece não haver problemas de entendimento e julgo que esta postura merece, em princípio, concordância e assentimento da parte de quem me leia. Acontece que esses objectos paralelos produzem resultados que merecem análise ou, pelo menos, atenção e uma tentativa de compreensão.

Falo disto porque passei um fim-de-semana em completa clausura, sem qualquer espécie de contacto com o mundo a que me habituei - exceptuando os contactos telefónicos pontuais com a família para saber se "estava tudo bem". E, chegado à Terra, deparei-me com um curioso fenómeno que não sei ainda sob que etiqueta hei-de guardar.

Morreu um jovem actor da série Morangos com Açúcar, da TVI. A série nunca me mereceu mais do que uns minutos de visionamento, a maior parte das vezes por resignação minha, muito mais do que por curiosidade - porquê sair de casa e ir fazer qualquer coisa se posso ficar frente à televisão sem mexer mais do que os dedos que controlam o comando, para fazer zapping e baixar o volume, e o diafragma que controla a respiração, por razões de sobrevivência? Contudo, arrisco dizê-lo: nos Morangos com Açúcar, havendo arte, será nos resíduos de qualquer coisa que não se prenda directamente com o essencial do que é - ou deveria ser - uma série televisiva: textos, interpretações e realização. E o que noto, hoje, dia em que li jornais e vi noticiários, é que este objecto paralelo deu à luz o mais recente ícone da cultura portuguesa, sob a qualidade de "actor desaparecido antes do tempo". Que desapareceu antes do tempo, ninguém duvida e muito menos contesta. A morte de um rapaz tão novo é sempre de lamentar - qualquer morte, em qualquer idade, terá sempre alguém que a lamente, julgo eu. Neste caso, lamento a morte de Francisco Adam. Só não sei como conceder-lhe o tal estatuto de "actor", de "artista".

Tudo isto me leva a uma questão: a arte dos dias de hoje. A cultura sempre teve os seus ídolos e os seus ícones. Muitos deles, ao longo dos tempos, foram efémeros. Outros conservam ainda hoje o estatuto e acredito que o percam apenas com o desaparecimento do último ser humano. Nestas coisas "da arte", o tempo é, muitas vezes, um bom juiz. Embora acredite igualmente que talvez vá cometendo algumas injustiças, deixando, aqui e ali, que a memória colectiva diminua a importância e o mérito de gente que os teve em grande escala num pretérito cada vez mais longínquo, quase imaginário. E nestas mesmas coisas "da arte" o presente é um tempo esquisito, do qual nunca se sabe bem que significado extrair, uma vez que se limita a dar-nos as coisas, assim, deixando-as diante dos nossos olhos, sem mais explicações. Suponho que em todos os "presentes", em todas as eras e todas as artes e objectos paralelos que tenham existido, hajam surgido ícones e ídolos difíceis de compreender e avaliar. Porque nós, os de hoje em dia, não somos menos aptos ou mais expeditos do que os que nos antecederam nestas coisas "da vida", em geral, e "da arte", em particular. E eu sinto que estamos hoje perante o surgimento de um destes casos de estranha idolatria. O que me leva a uma conclusão - que será temporária, porque está ainda sujeita a reformulação, revisão e actualização: nos dias de hoje, não é líquido que a arte gere ídolos; mas os ídolos de hoje em dia arriscam-se a redefinir as fronteiras e os princípios que definem a arte. Afinal, para todos os efeitos e segundo a opinião geral, Francisco Adam foi actor.