4/25/2006

a minha palavra é apátrida

Para mim, a palavra é uma abstracção, não tem corpo físico e não tenho muita capacidade de a trabalhar. Licenciei-me em matemática (aplicada à economia e gestão), não que sentisse especial vocação para os números, mas porque me atraía francamente mais o estudo e manuseamento do abstracto das ideias e raciocínios que, uma vez percebidos, nunca se esquecem, do que propriamente “decorar”.

Na matemática os alfabetos são desmantelados e uma letra é apenas uma designação para uma variável ou uma constante, algo abstracto que se preenche com valores, uma espécie de caixinha onde se metem coisas. As equações matemáticas reduzem-se até à sua fórmula mais simples, eliminando o acessório, mas nunca deixando de ter interpretação intuitiva e até perfeição estética. Fala-se muito, na matemática e na física, de equações elegantes, e é isso que admiro também na escrita.

A minha letra é um assassinato estético e raramente assino o meu nome duas vezes da mesma forma. Aliás, não deixo de sentir uma pontinha de ridículo pelo procedimento de “assinar” algo em que a grafia seja importante, e não raras vezes tenho de repetir assinaturas recusadas por bancos, com a minha titubeante mão esquerda. Um nome, é uma designação prática para nos distinguirmos uns dos outros em abstracto, e não sinto necessidade de fazer grande alarido disso.
O português não é a minha língua materna, mas sim o francês, e comecei por ler clássicos franceses em francês, por influência da minha mãe (que é belga). Comecei depois a ler literatura americana ou inglesa, em inglês. Para mim os livros não têm uma nacionalidade, apenas um autor. Leio Becket em francês ou Philip Roth em inglês, com o mesmo gosto que leio Pessoa em português.
Li mais traduções para português, de autores ingleses, alemães ou russos, do que propriamente de autores portugueses originais, exceptuando os incontornáveis Pessoa, Saramago, Eça, Lobo etc. pelo que tenho pouco afecto pela literatura portuguesa, se é que isso existe como corpo passível de ser alvo de afecto. No entanto, adoro Portugal e é o meu país, não sou um cidadão do mundo como dizia o outro que não era ateniense. E no entanto, a minha autorização de residência e o meu BI dizem que eu sou belga.
Acontece-me não me lembrar da língua em que estou a ler um determinado texto. Por exemplo, se fecho um livro que tenho à frente dos olhos, e penso um bocadinho nele, acontece-me, no caso de autores estrangeiros, esquecer-me se o livro que tenho na mão está em português ou na versão original em inglês ou francês.

Pode ser uma desculpa pegada para justificar a minha letra horrível ou para os limites que tenho no domínio da língua, ou para a recíproca falta de afecto - ou até desprezo - que temo que a literatura portuguesa venha um dia ter por mim, mas gosto de pensar que a arte mais próxima de um arquétipo simples, é mais universal, perfeita intemporal, e eleva o homem para lá da sua condição mortal porque o liberta do acessório que está presente em tudo o resto que se faz.

E tenho de me lembrar de explicar isto aos senhores do banco, da próxima vez que assinar um papel.