5/16/2006

fim

Como tantos bons romances que acabam a meio e ficam na gaveta, este blogue começou com base em vários equívocos.

Com a concordância dos três autores e amigos, ele acaba aqui.

Muito obrigado a todos pela visita.

5/15/2006

Da parte de Tchékhov, uma vénia para Prado Coelho

Tenho criticado alguns textos de Prado Coelho pela sua literatice imoderada que chega a atingir o ridículo. Agora que um texto de EPC se me apresenta claro, inteligente e «único», sem citações a não ser do autor analisado, tenho de fazer uma vénia a EPC.
Trata-se da sua crítica no Público (esqueci a data) à encenação de Luís Miguel Cintra de A Gaivota de Tchékhov. Depois de ver o Tchékhov verdadeiro que a Cornucópia nos deu, fui, uns dias depois, ler as críticas à peça (creio que todas as que saíram) afixadas na entrada do Teatro do Bairro Alto. De entre todas (as fáceis, as eruditas, comparativistas todas, puxando algumas dos galões da citação de grandes dramaturgos para explicarem artificialmente a peça e a encenação, mas mostrando todas que não conhecem o espírito de Tchékhov e do seu teatro) destaca-se a de EPC: sim, ele percebeu Tchékhov, percebeu A Gaivota, apreciou o espectáculo da Cornucópia por ter ressuscitado o Tchékhov que muito do modernismo assassinara. Raciocinou com palavras simples e claras sobre o que é Tchékhov e o seu teatro, esteve dentro da peça e deu a sua opinião com conhecimento de causa e inteligência. Chamou à encenação que recuperou o verdadeiro Tchékhov de «pós-moderna» e tem razão. Estava a ler a crítica de EPC e era como se essa crítica me acusasse, a mim próprio: «Toma lá que já almoçaste».

5/14/2006

Cicloturismo - passeio de bicicleta - Baleal Peniche Baleal (24km) - fácil

Aparecem exemplos de blogueiros como aqui, no Santa Terrinha, que deixam um mapa com um esquema e uma descrição sumária do percurso. É uma excelente ideia visto que não existem bases centralizadas on-line. Hoje em dia o BTT ou intermédias, ganham adeptos porque levam os ciclistas para fora das estradas nacionais, para o meio da Natureza, sempre que possível. É de facto mais seguro. É preciso transportar as bicicletas no carro, com barras e suportes próprios, para as levar aos sítios interessantes. Acreditem, fazer 50km de estrada numa bicicleta de estrada, é tão cansativo como fazer 15km em terrenos "campestres", pelo que compensa.

Prometo ir deixando aqui alguns passeios que vou fazendo na zona oeste. Começo por este, de Peniche.

Baleal - Peniche - Baleal


dificuldade: fácil
distância: 25km
duração: +- 1h:30

1
Sair na A8 para Peniche, seguir para o Baleal, e estacionar do lado de cá, isto é, não levar o carro para a ilha que está ligada por uma estrada de uma faixa. Isso é para o passeio dos tristes. Os bons visitam a ilha de bicicleta ou a pé. É a primeira coisa a fazer, partam para a ilha, dêem a volta (por qualquer um dos lados, como Robinson Crusoe descobriu, vão dar ao ponto de partida). Aproveitem para ver o mar e invejar os sortudos que têm ali casa, construída ilegalmente no final dos 70s, mas ali está e bom proveito para eles. Humpf.

2
Voltem para o lado de "cá" e entrem na gigantesca ciclovia que liga o Baleal a Peniche. Não é especialmente divertido, são rectas enormes. Aos fins de semana há muito trânsito, cuidado, não atropelem aqueles casais que gostam de andar a pé nas ciclovias, algo que me deixa francamente intrigado, visto que a praia do Baleal é óptima para andar a pé, pois tem um areal enorme que liga o Baleal a Peniche e que fica bem duro e estável, ideal até para os amantes do jogging. Ultrapassa-me que prefiram andar a pé à torra do sol, encostados a uma estrada de alcatrão. Outro exemplo surpreendente é a ciclovia da lagoa de óbidos que é usada regularmanente por pedestres, quando a lagoa e as suas belas margens frescas estão ali a 200m...

3
Chegados a Peniche, cortem à direita na primeira rotunda e sigam sempre em frente para o cabo carvoeiro, pelo lado norte. Aqui é estrada, mas durante a semana é muito pouco movimentado. Aqui encontram as subidas, embora sejam realmente muito pouco inclinadas e muito suaves. Aproveitem para parar na "varanda de pilatos" ou no café do cabo carvoeiro. A vista é esplendorosa. Bebam água, tirem fotos, essas coisas. A Nau dos Corvos é fantástica e nunca as Berlengas se viram tão bem de terra. Cliquem Aqui- têm uma listagem de pontos de interesse do Cabo Carvoeiro.

4
Continuamos o caminho, podem sair da estrada, há uma série de carreirinhos com nomes sugestivos com diabo e inferno pelo meio, onde intrépidos pescadores descem para para pescar peixinho fresco. Chegados a Peniche, podem ver o forte onde Álvaro Cunhal esteve preso e conseguiu fugir. Tentem descobrir como e por onde. Não é fácil. Vão pelo pontão do farol de peniche, vejam os barcos, e invejem os donos dos dos veleiros, especialmente os de mais de 7 metros. Eu pelo menos invejo sempre, faz-me bem, dá uma espécie de motivação extra para sermos ricos nós também. Se calcularam bem o tempo de percurso, sigam para o ponto 5.

5
Almoço! Passar por Peniche e não comer uma caldeirada é crime, até para o ciclista desportivo que está no pelotão da frente. Nem o Lance Armstrong resistiria ao cheirinho que emana dos caldeirões. Podem deixar a bicicleta junto à esplanada que escolherem. Recomendo o restaurante do toldo verde, logo o primeiro que tem vista para o cais, porque está mais perto, e qualquer esforço extra para a operação delicada que se segue, não é recomendável. Comam bem, empanturrem-se, vai ajudar-vos a pedalar. Os preços são baixos quando comparados com o mesmo prato em Lisboa, mas com muito mais qualidade e variedade de peixe. Uma caldeirada para duas pessoas (na prática 3 ou mais) custa 22 euros, o mesmo que um ovo escalfado e um cestinho de pão nos restaurantes que o Eduardo Pitta recomenda.

6
Depois do café, partam de novo para o Baleal pela ciclovia de novo. Não recomendo ir pela praia porque areia, água salgada e rolamentos de bicicleta não combinam bem. Agora, estranhamente, custa mais depois do almoço. Pode ser por estar mais calor ou pode ser do almoço no bucho. O terreno continua plano mas parece que custa mais. O grau de dificuldade varia consoante a quantidade de caldeirada e imperiais que consumiram. Amadores, tenham cuidado.

Depois desta manhã desportiva, vinguem-se a ver filmes na TVI a tarde toda.
Nota muito positiva para as câmaras municipais que apostam em ciclovias.

O lucro não é pecado

Esta é talvez a ideia mais frontal saída de um programa a cargo do Opus Dei, feito ontem pelo Opus Dei na SIC. Sim, porque aquilo, clara e ingenuamente, não era uma «reportagem objectiva da SIC sobre o Opus Dei», como eles pretendem, mas um programa de propaganda da própria seita para minorar os efeitos do filme Código Da Vinci. Esta igreja dentro da Igreja em que se transformou a seita fundamentalista do santo Balaguer, e que, graças aos apoios dos dois últimos papas de Roma está a transformar-se na própria Igreja católica; a rapidez com que o fundador Balaguer, um franquista militante, foi tornado «santo» por Wojtyla; o domínio confessado da seita na alta finança e na formação de elites (com o apoio de governantes e mesmo de governos) deveria fazer pensar os homens livres, católicos ou não.Na reportagem de ontem, lá estava o Mota Amaral, lá estava o Jardim, ex-patrão do BCP, substituído no comando do empório financeiro por outro opus dei. Lá estavam os numerários, supranumerários, agregados, sacerdotes e escravos do Opus Dei, ressumando hipocrisia, mentira, areia para os olhos. Nem uma voz contra e, de fora do Opus Dei, apenas uns poucos ex-militantes tão seguidistas que até se sentiam mal por terem saído. Até o próprio «historiador do cristianismo» presente era deles, estava lá para debitar baboseiras inócuas.O conceito de que o lucro não é pecado aos olhos de Deus (os olhos de Deus são os deles, com óculos ou sem óculos de ouro) pairou por cima e por dentro de todo o programa propagandístico. O resto era mentira e hipocrisia. Jardim disse que o seu substituto o era por competência e não por ser do Opus Dei; um padre fanático disse que o cilício medieval e a martirização não o era, que aquilo era mais doce do que «puxar o lençol de baixo»; encerrados atrás das grades da sua servidão, os opusdeístas falavam de «liberdade». Como se toda a humanidade que visse a SIC fosse estúpida, como se nos pudessem enganar como a meninos. Aquilo foi ridículo e trágico, porque eles vão alargando, aprofundando o seu poder.

5/11/2006

Identidade e origem

Chamei Identidade e origem a isto, mas os termos até podem não ser exactamente estes. De qualquer modo, a obsessão pelo rigor pode entorpecer o discurso, pelo que vou tentar saltar esta parte o mais depressa possível, antes que o leitor desista do texto. Supondo que há um leitor.

Dantes, há muito, muito tempo. Ou talvez nem fosse há tanto tempo assim, já que eu ainda não contabilizo propriamente uma enormidade de Primaveras. Há algum tempo, digamos. Naquela idade em que estamos a caminho da adolescência mas ainda agarrados à infância. Mais coisa, menos coisa. Por essa altura, dizia eu, havia uma pergunta que, quando me era dirigida, causava transtorno. "De onde é que és?" E eu ficava assim, sempre na dúvida. Ser, ser, eu tinha a impressão que era de Mafra. Porém, asseguravam-me que havia nascido em Torres Vedras. Pode parecer uma situação menor, mas a mim fazia confusão. Nascera em Torres Vedras porque se usava, na época, que os bebés da zona fossem a Torres Vedras ser nascidos. E eu não era excepção: a minha mãe estava com contracções, o meu pai pegou nela e levou-a à maternidade "vamos para Torres", disse ele ansioso, um tanto atrapalhado e meio emocionado por estar à beira da experimentação do exercício de paternidade. E fomos, os dois mais eu, que na altura ainda não contava para nada em termos numéricos. Portanto, nascer em Torres Vedras foi mais uma inevitabilidade, uma consequência simples do formato de administração regional do que uma escolha ou um capricho dos meus pais. É curioso notar que este assunto ainda se mantém actual; e é de estranhar que o tratem como se fosse novidade - "ah, agora as crianças não vão poder nascer onde os pais querem". Acreditem, foi o que me aconteceu há 26 anos atrás. A mim e, seguramente, a uns bons milhares de outros que, como eu, nessa tal idade de indecisão, não sabiam dizer de onde é que eram. Daí que a minha resposta fosse singela e sincera, embora um pouco extensa "nasci em Torres Vedras mas vivo em Mafra desde que nasci". Desde umas horas mais tarde, em bom rigor. Cá está o rigor outra vez.

Passaram-se uns tempos e decidi que, para o mal e para o bem, mesmo correndo o risco de não ser preciso na resposta ou de desvirtuar as inscrições da certidão de nascimento, seria de Mafra daí em diante. E assim fui. Assim fui sendo de Mafra, entenda-se. Durante vários anos. É fácil perceber porquê: a minha relação com a escadaria do Convento ou com as árvores do Jardim do Cerco era incomparavelmente mais estreita, próxima e carinhosa do que a outra, fria e distante, que resultava da breve passagem por determinado berço público torreense.

Mais anos se passaram e eu andava confortável com a situação. Sou de Mafra, pronto, não vale a pena especular, voltar ao assunto, remexer no passado. Afinal, ninguém tem que saber que nasci em Torres. Praticamente ninguém sabe e não é coisa que faça questão de tornar público, embora também não tenha razão para me envergonhar do sucedido. Tudo estava bem até que, no fim-de-semana que passou, viajei até Braga, cidade de que muito gosto - por acaso, não é para dar graxa aos bracarenses, mas gostava de ser de Braga. A sério. Era de música que se tratava e eu, juntamente com os outros dois elementos de Feromona, tínhamos compromissos a honrar e novos públicos para conhecer, pelo que nos fizemos à estrada a caminho de 800 quilómetros em 24 horas (ida e volta, claro), para cerca de uma hora de actuação e um punhado de euros. Mas, nestas coisas, o que nos move não são os euros. No caso, foi um Ford Mondeo - bem confortável, por sinal. Onde é que eu ia?...

Ah, Braga. Quando chegámos ao sítio combinado, fomos recebidos por pessoas que ainda não conhecíamos pessoalmente. "Pois... vocês têm ar de quem vem de Lisboa", a tirada foi pronta e veio revestida de simpatia e alguma provocação - bem disposta, bem humorada, acolhedora. Sim, éramos nós, de facto, e vínhamos, exactamente, de Lisboa... e foi aqui que eu comecei a pensar "mau... mas tu queres ver que?..."

Mais tarde, em conversas de quem se está a conhecer, trocando impressões de um lado para o outro com os companheiros de música que tiveram a gentileza de nos receber - e que bem receberam! -, temi que a pergunta surgisse novamente, quinze anos depois de eu ter arrumado a questão. E eis que surgiu "és de onde? Mesmo de Lisboa?". Não creio que me tenha arrepiado. Porém, não garanto que não tenha ruborescido um pouco. "Bem, eu..." A verdade é que não sabia o que dizer. Não, de facto, de Lisboa não era. Não sou. Não foi aqui que nasci. Não foi aqui que cresci. No entanto, oito anos na zona antiga da cidade, fazem com que eu sinta desconforto em dizer "ah, não... vivo lá mas sou de Mafra". Soa um pouco a pequena traição. No mínimo, soa a desconsideração por este sítio que adoptei e que, à sua maneira, me adoptou também. No fundo, e se eu usasse o mesmo critério que usei há quinze anos, a minha relação com a escada irregular da Travessa da Pereira ou com a inclinação tortuosa da Voz do Operário (de madrugada) ou com a placidez do adro de Santo Estêvão é hoje bem mais próxima e fraternal do que a que me resta, na memória, dessa outra com as escadarias do Convento ou com as árvores do Jardim do Cerco. Por outro lado, aplicar assim esse critério seria desconsiderar as minha queridas raízes... Caramba, não se pode ser dos dois sítios?

Psycho, ou o valor de uma boa história



Ontem vi o Psycho do meste Hitchcock e urge fazer uma série de reflexões sobre o valor de uma boa história. Os filmes de Hitchcock, apesar de não serem nunca mais do que uma boa história, são sempre muito mais do que uma boa história.

O Psycho, de 1960, pode não ser o melhor de Hitchcock (em minha opinião é o Vertigo) mas é sem dúvida o que mais inspirou e marcou a 7ª arte do género thriller.
Se uma cena está no Psycho, essa cena é hoje um cliché do cinema,

Os artistas podem dividir-se em dois grupos: os maus e os bons.
É a única divisão segura. Mas arriscamos outra, penas para efeitos de exposição de um ponto de vista. Dentro dos bons artistas podemos ainda dividir entre os que acreditam no objecto que criam, e os que acreditam apenas neles próprios, ou seja, entre os que se esmeram para ir de encontro ao espectador/leitor levando-o na direcção que querem, ou os que se esmeram para ir directamente ao encontro do seu próprio âmago, levando os espectadores/leitores consigo.

Hitchcock é um daqueles que acredita nos objectos que cria: os seus filmes, na história e nas personagens. Pode ser mentalmente depravado, que se sabe que era, mas isso não é explícito nos seus filmes. Podemos imaginar Hitchcock com um sorrisinho doentio a fazer pequenas alterações no argumento para obrigar uma qualquer diva loira no set a tirar mais uma peça de roupa. É curioso também que as histórias não são escritas por Hitchcock, o que ainda parece afastar mais do artista o objecto que cria, quando, na verdade, se sabe que nunca é assim.

Psycho decorre com mudanças de ritmo e de direcções completamente inesperadas e tem um twist no fim. Depois surge um psiquiatra que explica os comportamentos do psicopata à polícia, aos amigos das vítimas (e ao espectador pois claro). A explicação é longa, o psiquiatra fuma cachimbo, e o final do filme parece estranhamente apaziguador. Compreendemos a crueldade e o crime. Teve uma infância difícil, coitado, teve este aquele trauma etc.
Um psicopata de personalidade múltipla estripa pessoas e depois é analisado, compreendido, explicado, e isso até pode significar a sua absolvição pelos tribunais porque o darão como doente.
A conversa do psiquiatra pode considerar-se o acto crítico, o acto de explicar o insondável e complexo humano, de tentar aplicar uma abordagem positivista a actos selvagens e brutais, a mesma que é aplicada à criação da arte.
Essas interpretações estão sempre profundamente datadas e incompletas. As do Psycho parecem tiradas a papel de um manual de psiquiatria, de uma palestra de um Jung, muito em voga naquela época.

Mas, no fim, depois da conversa do psiquiatra, Hitchcock ainda atira outra reviravolta, negra e imprevisível. A história e a personagem prevalecem sobre o racional, mesmo antes do fade out. Têm vida própria. E isso torna o filme eterno.

Nota final:
Seria exagero dizer que hoje o cinismo tomou conta de toda a criação, seria sem dúvida incorrecto.
Continuam a existir cineastas e escritores que se esforçam para criar coisas que, não ambicionando a ser mais do que um excelente filme ou livro (que não é pouco!), acabam por ser mais do que isso.
Mas no caso particular de Portugal, no cinema e na literatura, os que acreditam nas histórias que contam não são suficientemente bons e os outros querem todos poetas e críticos. Saramago parece ter perdido o gás desde 95. Do provinciano cinema português é melhor nem falar! Não há histórias de jeito nem personagens que entrem no imaginário de ninguém e de nada.

Temos péssima ficção, péssima, uma ficção cheia de medo do ridículo. O resultado tem sido uma procura da originalidade no terreno difícil e quase sempre estéril da ausência de efabulação, essa tera árida onde, apesar da erudição provinciana, crescem histórias e personagens raquíticas.
Até ver.

5/09/2006

O Benfica é Donner, não é Koeman

Dostoiévski esteve quatro anos preso na Sibéria e mais dois deportado. Fala com conhecimento de causa da sua condição de «animal prisional» nos Cadernos da Casa Morta (Editorial Presença, 2003). Não se esquece de referir a compaixão do povo russo para com os presos, alguns dos quais cometeram crimes hediondos de que não se arrependem. Mas o povo russo continua a vê-los como seres humanos e dá-lhes a esmola e o carinho que pode. Isto é o preâmbulo.
Mais uma vez derrotado este ano no futebol - note-se que a consciência geral do povo futeboleiro é esta: não são os outros que ganham, é o Benfica que perde - o Benfica cultiva, ou traz nos genes, uma força moral tão forte e tão próxima do povo que chega a ser comovente. Não sei se o Benfica foi também derrotado no futsal e no andebol, pouco importa. Importa que as equipas destas duas modalidades visitaram há pouco um estabelecimento prisional, jogaram e conviveram com os reclusos. Donner, ucraniano e actual treinador da equipa de andebol, estava presente e declarou (cito de memória): «Qualquer pessoa pode ter problemas com a polícia e ser presa. Os presos também são seres humanos, também precisam de calor humano.» Como benfiquista, gostaria que este herdeiro do povo russo e de Dostoiévski ficasse. Koeman pode ir.

5/08/2006

o vento nas árvores

Afastava-me muito de casa na aldeia, com a minha IBA, uma bicicleta vermelha de fabrico português, cujos pedais não tinham posição de repouso, andavam sempre, e para travar tinha de fazer força com as pernas. Por vezes, quando em alta velocidade, escapava-me um pé do pedal e as minhas pernas eram violentamente açoitadas até a bicicleta parar.
Um dia afastei-me demais, com os meus amigos Luís e Marco. Passámos a famosa Quinta do Hespanhol, o campo da bola do Casal do Sol, onde aos domingos havia pancadaria estilo aldeia gaulesa, e seguimos, para oeste, por uma estrada de terra batida coberta de pó vermelho, resquícios das primeiras plantações de eucalipto. Os caminhos de campo daquela zona de charnecas e vinhas, têm todos uma coisa em comum. Sulcos de tractores. Só os tractores as usam, e por isso, no Inverno, as pesadas rodas escavam dois profundos sulcos na estrada. Os sulcos são por vezes tão largos que podemos pedalar lá dentro, mas a arte consiste em pedalar ao meio, onde a estrada é lisa, evitando cair.
Quanto mais nos afastávamos da civilização, mais os sulcos se afundavam na lama vermelha, seca, ainda com os rastos da última passagem de tractor. As planícies altas estendiam-se por todas as direcções, com algumas ovelhas inglesas, aquelas com a cabeça preta e o pêlo branco, uma importação excêntrica do proprietário da Quinta do Hespanhol muito badalada nas conversas no café do Luís Charuto ou do Rui.
E nisto, eis que surge, no horizonte, uma pequena mata de pinheiros mansos, como uma ilha. Avaliámos a distância com os binóculos de ópera que eu levara de casa.
Marco, o mais velho e maior, com a sua t-shirt do Flash Gordon que trouxe de França, é que dava as ordens. E aí, a ordem foi de fazer meia volta. Aquele objectivo não constava do nosso território de jurisdição. Era demasiado distante. A noite, apesar de ser Verão, estava a cair e os nossos pais já estariam preocupados e à nossa espera para jantar. Eu, naturalmente, discordei, e o Luís, que era o mais novo e que sempre que havia alguma asneira para ser feita estava na linha da frente, também. O Marco não se convenceu e optou por fazer meia volta.
À medida que o via afastar-se de nós, deixando um rasto de poeira com a sua BMX, parece que sentia olhos na escuridão da floresta, aguçando o apetite, afiando as garras e os sentidos, dando um alerta geral. Ouvimos uma coruja piar e ouvimos, apesar de não a vermos, as suas asas imensas a bater.
Virámos as palas dos bonés para a frente, algo que só fazíamos à noite por medo de ir direito a uma teia de aranha (eu era aracnofóbico e ainda sou um bocado). Seguimos, em direcção àquela misteriosa floresta. O caminho, naturalmente, acabava mesmo na sua orla. Mal o Sol mergulhou para lá do horizonte, o vento soprou do mar, agitando as árvores como uma tempestade ameaçadora. Nunca tinha ouvido algo tão assustador como o barulho das árvores à noite, no meio do nada, nem o mar, em dias de marés vivas, soa assim.
Eu e o Luís fizemos meia volta a pedalar a toda a velocidade. Não conseguia olhar para trás. Era muito mais escuro do que me tinha apercebido e mal mergulhámos no vale, por entre os eucaliptos, tornava-se difícil ver bem o caminho. Víamos morcegos a voar, daqueles que saiem das suas grutas depois do lusco-fusco. E um fio de uma teia de aranha, ou talvez uma erva, passou-me pela cara, e os meus pés descoordenaram-se e saíram dos pedais e o acidente foi inevitável, saí da estrada numa curva e fui-me enfiar num campo de terra batida, espalhando-me ao comprido. O Luís nem esperou, continuou a pedalar, mas não perdia pela demora pois dali por uns 300 metros também ele se espetaria no sulco de um tractor. Quando passei por ele já se levantava e preparava para pedalar.

Cheguei a casa já de noite e fui acolhido com notável indiferença pelos meus pais, aparte um ralhete pelas horas. Nem um comentário pelo meu ar esbaforido, pelas pernas vincadas de nódoas negras e esfolões ou pela camada de pó que me cobria. Penso que o meu aspecto assim era comum no fim dos dias de Verão daqueles tempos.
Pergunto-me o que aconteceria se hoje aparecesse assim em qualquer lado. Será que alguém reparava?

5/06/2006

Dez minutos de Público

O Público é um dos melhores jornais portugueses porque se lê em cinco minutos, contando o deste sábado com mais cinco para um artigo de interesse, «O Bobo Inteligente», de Rui Tavares: um humorista americano, qual cavalo de Tróia, aproveitou os dez minutos da sua intervenção na jantarada paternalista do presidente para lhe fazer tantos louvores, e à América, e à imprensa americana que encobre a América bushiana, que a ironia funcionou e se volveu em sátira eficaz. A imprensa americana calou tão bem a performance que, se não fosse a Net, não saberíamos de nada.
Outro artigo de interesse, que não de honestidade jornalística, chama-se «Fidel Castro já é mais rico do que a rainha de Inglaterra». Neste artigo pratica-se na perfeição a arte do «parte-se do pressuposto». Parte-se portanto do pressuposto de que de Fidel Castro não é de esperar nada de bom e que, se a Forbes insiste em que o homem é rico, com base na obviedade de que certas empresas, porque são nacionalizadas, ou nacionais, logo são «dele», logo se «estima» que ele tira dividendos delas, isso é notícia. Fidel Castro nega, mas o Público prefere dizer que «ficou furioso». A Forbes «estima», insidiosamente é certo, o Público quase-quase afirma, também insidiosamente. Tenho dois alvitres para os que querem partir de outros pressupostos semelhantes: Hugo Chávez e Evo Morales. Também se fartam de nacionalizar para ficarem tão ricos como o Fidel Castro, são dois índios feios como botas da tropa, e o Evo, em vez de capachinho, tem um capacete na cabeça feito de cabelo natural.
No querido Mil Folhas nunca perco o Jorge Silva Melo a fumar na sua coluna Fora do Mercado. Tal como eu, modéstia à parte, ele pratica muito bem a arte de misturar poeticamente alhos com bugalhos para reconstituir um passado provável. Também no Mil Folhas não li a «crítica» de Eduardo Pitta à recente tradução da Arte de Amar de Ovídio. Passei-lhe a vista e logo vi que é um artigo para guardar porque tem muitas informações úteis, como o número de páginas, e extractos da Arte que podem vir a servir para mostrar erudição em certas reuniões. Quando se lembrará Eduardo Pitta de fazer crítica como eu já lha vi (li) fazer?

5/04/2006

sentido de obrigação

Quando vivia em Sta. Apolónia, por vezes deixava o meu carro no parque do museu Militar porque não arranjava lugar em mais lado nenhum. Depois das 20h fechavam-se os pesados portões verdes e aquele pedaço de asfalto, do lado de fora, cercado por correntes vermelhas e brancas, era devolvido à predação pública.
O soldado de serviço, impecavelmente fardado de verde e boina preta, era rapidamente substituído pelo arrumador daquele fuso horário (eles iam-se revezando). E lá estava, um tipo de gorro azul, seboso, beata fumegante, de ar expedito e servil, a apontar para um parque vazio, perante o olhar algo vexado do tropa de serviço, a espreitar por cima do ombro.
A indicação do arrumador era inútil para os locais como eu que, mesmo assim, pagavam 50 cêntimos todos os dias do ano para estacionar à porta de casa. Esses 50 cêntimos eram rapidamente convertidos em copos de três mas a mim faziam-me sentir uma espécie de Madre Teresa da rua dos caminhos de ferro.
Tinha era de tirar o meu Ford Escort de lá antes das 8 da manhã, antes do museu reabrir e vir uma enchente Citroen AX verde tropa, e alguns carros de melhor aspecto, como um ou outro BMW, sobras de algum ministério. Curiosamente, tirei quase sempre o carro antes das 8. É preciso que se diga que nos outros dias eu acordava tarde. É que eu, de costume, acordava primeiro às 8:30 e depois usava o snooze de 10 em 10 minutos até às 9:30, sintonizado na antena 1, saltava da cama, fazia a barba ao mesmo tempo que lavava os dentes e tomava banho, e depois guiava pelo trânsito de Lisboa como um condutor de ambulância sem ambulância.

Foi aí que compreendi o poder do sentido de obrigação para controlar o sono.
Então decidi começar uma experiência estóica. Deixava o carro de propósito no parque do Museu Militar no dia anterior porque assim era forçado a tirá-lo de lá antes das 8h e chegava ao trabalho antes das 8:30, supreendendo as mulheres da limpeza agarradas ao telefone dos chefes a fazer chamadas para a família em angola (jurei segredo).

Desisti da ideia no dia em que saí da cama às 6:45 da manhã, em pleno Inverno, vesti roupa por cima do pijama, fui até ao carro no parque do Museu Militar, desembacei os vidros, aqueci o motor, saí com o carro, procurei outro lugar na minha rua, estacionei depois de complicadas manobras, saí do carro, entrei dentro de casa, despi a roupa e voltei para a cama e adormeci.
Nesse dia, cheguei mesmo atrasado.
O meu esquema era falível e fiquei muito desiludido, como devem imaginar.
Mas isto do sentido de obrigação funciona, tenho a certeza que sim, é preciso é a obrigação ser mesmo obrigatória.

5/03/2006

Peter Handke ou: o teatro, um favorito da censura

Abro aqui uma coluna sobre teatro, uma arte muito esquecida também na blogosfera. Infelizmente, dada a actualidade e a gravidade de uma notícia que li hoje nos jornais franceses, este primeiro post fala de França e não de Portugal.
O administrador geral da Comédie Française, Marcel Bozonnet, retirou da programação já decidida para uma das três salas (Vieux-Colombier) a peça de PETER HANDKE Viagem do País Sonoro ou a Arte da Questão, para «não dar visibilidade pública» (assim se chama agora à censura do politicamente correcto em França), retrospectivamente, a um acto político de Handke: este assistiu ao funeral de Milosevic e discursou, exprimindo as suas simpatias pró-sérvias, conhecidas desde há muito, decidindo o tal Bozonnet, superiormente, que isso seria um «ultraje às vítimas». Trata-se de duas coisas: castigo de um «delito de opinião», e ir a reboque do politicamente correcto, a que os franceses também chamam bien-penseance, que Bozonnet sabe estar do seu lado. Na verdade, há uma unanimidade de pensamento da imprensa francesa sobre este assunto, a ponto de muitos livreiros já terem retirado dos seus escaparates toda a obra de Handke (em França, meu Deus!).
O crime de Handke que motiva este boicote e censura tem sido o facto de este ter denunciado a demonização constante dos sérvios e as bombas que foram lançadas pela NATO sobre a ex-Jugoslávia. No funeral de Milosevic, nem sequer se referiu ao homem, mas ao Sérvio.
O que despoletou a acção da bien-penseance francesa foi um artigo do Nouvel Observateur, a reboque do qual se precipitaram quase todos os médias franceses. Entretanto, o escândalo internacionaliza-se, já circula uma petição de protesto e indignação contra este acto de censura que tem como principal impulsionadora Elfriede Jelinek (prémio Nobel da literatura em 2004), já assinada por grandes nomes como Emir Kusturica, Paul Nizon, Michael Hanecke, Anne Weber, etc.
Peter Handke, no fundo, é o menos prejudicado: o seu nome e a sua obra já se impuseram e vão perdurar, com ou sem censura, ao passo que o nome do administrador geral Bozonnet não passará desta triste e fugaz notoriedade. Os grandes prejudicados são os franceses, que entretanto não dormem. Tenho estado a seguir um debate vivíssimo sobre a censura no blog République des Livres que já vai em cento e muitos comentários em poucas horas. Aconselho-o a quem ler em francês.

Primeiro de Maio

O meu Primeiro de Maio foi e continuará a ser social, por mais que me assediem as doces recordações de infância transmontanas em que se chamava o Maio Moço: os putos, armados de ramos de mimosas floridas, cantavam o Maio Maço e os grandes atiravam-nos à robertinha nozes, amêndoas, avelãs, castanhas piladas e moedas. Lutávamos para apanharmos os acepipes. Já era um Primeiro de Maio de luta.

5/02/2006

Confissão

O problema não é propriamente a falta de método. Falo da escrita, de escrever. O maior obstáculo é a falta de disciplina. Uma pessoa quer escrever qualquer coisa e até conta aos amigos "epá, olha, ando a remoer uma ideia, parece que está a marinar, vou começar a trabalhar o assunto" e, normalmente, isso é uma grande mentira. Eu costumo julgar que tenho ideias, fico coma impressão de que até vou escrevê-las, chego a elaborar o esquema da narrativa, pensar em como vou contar tal história, que ingredientes quero utilizar para lhe dar dinâmica, para marcar o ritmo, com que condimentos vou temperar as palavras, as frases, os parágrafos, para que quem me lê não desista de mim, da trama que eu criei, das personagens que gerei, do enredo que eu inventei. Pensar, eu penso. E até nem duvido que tenha força de vontade para executar, para consumar o acto, para começar, continuar e finalizar aquilo que se deseja: um livro. Quanto a isso da força de vontade, quase de certeza que a tenho. Mas falta-me algo. Ou alguém, uma entidade superior, uma espécie de mãe ou de ama ou de educadora infantil ou de professora da primária que venha e diga "Diego, vai escrever a tua ideia, vá". E não tenho. Sou caótico desregrado e, consequentemente, improlífico. O que é uma pena, porque eu tenho uma data de ideias tão porreiras que podiam dar bons romances...

bom dia!

Apaguei um post que tinha escrito e que estava aqui.
Em vez 'dele', prefiro deixar aqui um bom dia a todos, mas sussurrado porque são 5:55 da manhã e não quero acordar ninguém.

É a melhor altura do dia para escrever. O ar está fresco e quase toda a gente na cidade está a dormir em sono profundo, a sonhar. Quando está toda a gente a sonhar ao mesmo tempo, numa cidade, isso sente-se no ar, mas não se vê, está revestido a prédios de persianas corridas e ruas vazias onde passa um ou outro carro.
A alvorada é um cabo eléctrico.