4/29/2006

Yukio Mishima - Confissões de uma Máscara

Tenho um fascínio por Yukio Mishima que vai mudando de tonalidade à medida que descubro a sua obra e, sobretudo, a sua biografia.

Li os fantásticos "O Marinheiro Que Perdeu as Graças do Mar", "Morte no Verão "e o "Tumulto das Ondas" sem saber nada de relevante da biografia de Mishima a não ser do seu suicídio, em 1970, pelo ritual samurai sepukko, que contribuiu muito para a sua mistificação. Saiba-se que o sepukko consiste em trespassar-se a si mesmo por uma espada e ser depois decapitado.

Mesmo depois de saber que se tinha suicidado pelo sepukko, isso ainda enobreceu mais a sua figura, pois estas coisas da arte têm o seu quê de cruel e macabro, e parece que gostamos mais dos mártires.

Imaginei-o como uma espécie de samurai, um conservador desiludido com o seu Japão rendido à ocidentalidade, que se imolava para dar um exemplo às gerações vindouras.

Talvez tenha imaginado a cultura japonesa toda assim, e daí partiu uma espécie de fascínio pelo Japão, que passou por tentativas de preparar sushi em casa, com salmão cru ou compra de DVDs de Akira Kurosawa a preços imbecis.

O choque e espanto surgiu mesmo quando, por acaso, dei uma olhada a um facto biográfico e vi que Mishima era homossexual.
Desconfiaria mais facilmente de um Hemingway, sempre de peito inchado e prestes para a porrada, amante das touradas, do que um de um Mishima que parecia profundamente em paz. A sua revelada homossexualidade era totalmente contraditória com a imagem mental que fizera dele. Recorde-se que não sabia quase nada da sua biografia, nem nunca tinha visto estas fotos 'Hemingwaiescas', de pose samurai, só o conhecia pelos livros e nos livros havia serenidade, atonalidade, uma espécie de frieza que, no limite, caracterizariam uma alma sensível, muito próxima da infância, totalmente receptiva à beleza e ao poético, mas também à crueldade, sem manifestar a menor sombra de surpresa ou de medo, e tudo sem uma pontinha sequer do cliché do histerismo ou afectação pelo qual, preconceituosamente, poderíamos rotular escritores homossexuais como, por exemplo, Michel Tournier e o seu belíssimo, mas um pouco datado, Vendredi ou Les Limbes do Pacifique.

Outro factor importante, foi o de Mishima me ter sido dado a conhecer por uma bela mulher, fã dos seus livros, o que, de certa forma, me fez "invejar", no bom sentido a sua escrita, que era capaz de ser sensual para as mulheres, sem recorrer a nenhum dos pastiches de Don Juans que povoam as obras da nova pseudo-literatura de cordel ocidental , tão corriqueira neste nosso país.
No fundo, e perdoe-se-me a ousadia, gostava de escrever um pouco como Mishima, ser sensual, sem nunca ser vulgar ou banal.

Seja como for, julguei compreender Mishima. Percebia a origem da sensibilidade quase sinestésica nos seus livros. Sim, ele fala de perfumes e de cores, descreve a beleza masculina com tanto à vontade e nobreza como descreve a feminina… É óbvio. Só um "homossexual" poderia ter escrito aquilo e, de certa forma, deixei de considerar Mishima uma espécie de prodígio literário porque ele teria uma vantagem genética para escrever. Quase que me apetecia dizer “assim também eu Mishima...”

Mas, pensando bem, é assim para todos os escritores. Não é mais marcante a busca da sexualidade de Mishima do que o será a educação rígida ou experiência de guerra colonial de um Lobo Antunes.

O Confissões de Uma Máscara, a sua autobiografia da juventude, publicada nos anos 50 em pleno Japão do pós guerra, ainda destrói outro(s) mito(s), construindo outro, mais poderoso do que qualquer cliché, porque é baseado na verdade, ou pelo menos, numa máscara mais escondida do que as outras, que se revela sem pedir perdão. Depois de o ler, não será possível atribuir um rótulo a Msishima, como se a sexualidade o caracterizasse, ou tivesse de caracterizar. Aliás, Mishima parece muito mais próximo do psicopata sensível. As suas descrições e fantasias relembram-me, no seu gore, coisas como o Menos que Zero de Brett Easton Ellis, escrito uns 35 anos depois, mas também têm o mesmo existencialismo de um Fernando Pessoa no heterónimo Bernardo Soares, pela riqueza das impressões sensoriais que, no fundo, são uma espécie de festim na alma, pela sensação de isolamento ante os outros de contradição entre o vulgar e pequeno da vida, e o enorme drama épico na alma. As parecenças de Pessoa e Mishima não se ficam por aqui mas isso poderá ficar para outro post.

Curiosamente, António Mega Ferreira, no prefácio, traça um paralelo com o Estrangeiro, de Camus, que eu considero francamente mais distante por todos os motivos e mais algum. Diga-se, também, que Mega Ferreira afirma que o livro oscila entre dois estilos, um literato e um mais vulgar ou próximo de um mau gosto, coisa que francamente, também não vi. Para além de uma coerência a toda a prova no Confissões de uma Máscara, não acredito que a literatura dependa da linguagem (conforme explico no meu texto anterior “a minha língua é apátrida”) e tenho antes admiração pela capacidade de escrever com recursos linguísticos minimalistas, em que a poesia está nas imagens, situações e metáforas, e não na riqueza de recursos estilísticos.

E o que sobressai também, para mim, do Confissões de uma Máscara, é que quando um escritor aborda profundamente a verdade sobre si próprio, sem procura de absolvição ou redenção, estabelece um exemplo para a arte, é um acto maior e mais puro do que qualquer outro, mesmo que o seu eu seja contraditório, tumultuoso, cobarde, ou apenas outra máscara, outra ilusão, que ele próprio criou para si como se fora a verdade. Como será o Mishima, 20 anos depois, o do sepukko? Não sei. Por enquanto é este o meu “mito”. Curiosamente, e para exemplifcar a volatilidade da opinião que se tem sobre um escritor antes de ler uma biografia sua completa ou análises profundas feitas por quem percebe da poda, enquanto procurava imagens de Mishima para ilustrar este post, encontrei uma nota biográfica que diz que depois da publicação de confissões de uma máscara Mishima terá ponderado tratamento psiquiátrico, ideia que depois recusou, e mais tarde viria a aproximar-se do estilo de vida samurai e militar. Já nem sei se devia re-escrever este post. Mas vou deixá-lo assim como está porque é sincero.
Confissões de um Máscara é um livro sublime.
As confissões aos outros homens, públicas, parecem-me de maior valor do que todas as outras feitas no segredo do confessionário, porque se dirigem a todos que, podendo julgar, não podem nunca absolver.

E é essa pureza, essa honestidade, que está presente em todos os grandes escritores, que nos livros deitam a sua alma e, por um processo de exposição total, acabam, pela força do tempo, por tornar-se invencíveis e imortais, a qualquer julgamento ou censura.

Também realço como é possível um bom escritor ter tanta consciência de si mesmo, mas distanciar-se o suficiente para tornar abstracta a sua profunda e extrema experiência de vida. Todos os livros que Mishima escreveu não poderiam ser escritos tão bem por outros escritores, no entanto, os livros existem depois de Mishima, sem precisar de Mishima.
E tanto basta.

4/28/2006

Morreu o Alain

Não é uma figura pública, não é nosso familiar, nem sequer é português. Tinha 73 anos, era francês, anónimo como um pássaro. Era bom homem, e só por isso deve espalhar-se o mais longe possível a tristeza pela sua morte. Contava longas histórias, chatas (e tantas as vezes as mesmas), e mesmo assim toda a gente que o conhecesse procurava a sua companhia. Das primeiras vezes que o vi, foi como se já o conhecesse havia muito, como se tivesse sido seu companheiro de caserna na guerra da Argélia. Do que mais gostava era partilhar com os outros um bom vinho que tivesse descoberto. Assistiu ao doutoramento de um rapaz seu amigo como se assistisse ao do filho («Régulation de l'épissage alternatif chez les mammifères: exemple de l'ARN pré-messager de l'acétylcholinestérase dans la physiologie musculaire»), horas ali sentado, sem perceber uma palavra, como se assistisse a uma final emocionante de futebol. Tinha o horror de uma velhice dependente. Teve sorte: morreu de repente, rodeado de amigos, no meio de uma história divertida. Por estes dias, Deus é francês, já o recebeu, já disse: Salut, Alain.

4/26/2006

O Segredo do Bosque Velho – Dino Buzzati (8/10)

Depois de ler o magnífico Deserto dos Tártaros (10/10), precipitei-me para este “Segredo do Bosque Velho”, de dimensões tipicamente buzzatianas (livros pequenos e concentrados) e com mais uma capa e edição fantásticas, outra obra de arte da Cavalo de Ferro, com uma excelente tradução de Margarida Periquito.

A ler Dino Buzzati tem-se uma sensação de vertigem de um abismo onírico e fantástico que não controlamos. A palavra chave é “sonho”.

Em Buzzati, as personagens agem contra a própria vontade das mesmas ou do leitor. Se no ‘deserto dos tártaros’, Geovanni Drogo não abandona a fortaleza, o Bosque Velho está repleto de situações por vezes absurdas e por isso misteriosas, em que as personagens raramente escolhem o caminho certo, ou acabam por surpreender com actos de extrema bravura ou nobreza de carácter, mas sempre com um fortíssimo cunho aleatório e temperamental.

Logo depois do início, em que se apresenta de forma realista o Coronel Procolo (coronel que acaba de se reformar e herda uma propriedade na qual existe um antigo e mítico bosque velho), aparece um diálogo com uma pega pousada no galho de uma árvore. Estamos sempre à espera que Procolo acorde do “sonho” ou questione a veracidade de tal alucinação, mas não, dali em diante, o absurdo e o fantástico são assumidos, desde ventos que falam a génios que habitam em árvores, a bichos que contam histórias, nada é apresentado como “inesperado” ou mais peculiar do que a simples realidade do “mundo exterior”.

O próprio tom do narrador é jovial e despreocupado, pontuando a narrativa com ‘notas do autor’ em rodapé de efeitos extraordinariamente cómicos, como precisar factos aparentemente inúteis como horas do dia a que a acção se desenrola ou que os gritos das lagartas não podem ser audíveis nem pelos ouvidos mais sensíveis.

Apesar deste estilo causar um efeito desconcertante, também perde um pouco em força porque se dispersa, algo inusitado em Buzzati. Sentimos que ele não leva suficientemente a sério a ilusão que tão habilmente constrói, e aqui estará nas antípodas de um Dostoiévksi que consegue fazer precisamente o contrário: assume a ilusão, discorrendo sobre “personagens” ou “situações” fictícias, mas levando essa ilusão como se fosse a coisa mais séria e importante do mundo para o leitor, naquele momento (de facto, é).

Também, como um todo, O Segredo do Bosque velho assenta a narrativa em episódios algo desconexos, ou pelo menos, com quebras de “ritmo” e elipses inusitadas, algo que não acontece no perfeito Deserto dos Tártaros.

Mas no global, é um belíssimo livro que, em leitores que não tenham ainda perdido um bocadinho daquela infância feita de animais que falam e bosques mágicos, tem um efeito poético fortíssimo. Para além disso, é um livro para todas as idades.

Vejo que Il Crollo de La Baliverna será editado no primeiro semestre de 2007 pela Cavalo de Ferro, e ainda bem. Já li, há mais de 15 anos, a tradução francesa deste bicho, e é um livro de contos de cortar a respiração. Tenho na minha memória impressões claríssimas de alguns dos contos deste livro como as mais marcantes experiências de leitura que tive, ombreando com Edgar Allan Poe, Maupassant ou Auguste de Villiers de L'Isle-Adam

Feira da Ladra

Quando um ar de sol e rio a inunda de manhã, Lisboa, a provinciana, é bonita e é real. Os grandes traficantes movidos a marketing de luxo não passam por aqui. A mercancia é viva, a ladroagem é natural e honesta porque acessível a todos. O marketing é humano. Os pregões ladram. Todos se roubam, o dinheiro é pouco, não pode ser grande o roubo. O grande linguista povo, infalível e talentoso, escolheu bem a palavra: feira da Ladra. Se fosse criada agora, imagino o nome inglês que, para o mesmo efeito, lhe poriam e os ouropéis electrónicos que lhe escureceriam o sol e dariam ao recinte o ar fechado e hostil de centro comercial.
Passa por mim no recinto um casal de jovens ucranianos, ele com o bebé ao colo. Apressados, os olhos duros mas perdidos, menos os do bebé. Imagino que não têm onde dormir esta noite. Quem já passou por isto sabe que, assim, o rio e o sol não contam, que a beleza é uma treta. Por mim, este casal tem direito a tudo, até a apagar o sol para poder roubar na feira da Ladra.

4/25/2006

a minha palavra é apátrida

Para mim, a palavra é uma abstracção, não tem corpo físico e não tenho muita capacidade de a trabalhar. Licenciei-me em matemática (aplicada à economia e gestão), não que sentisse especial vocação para os números, mas porque me atraía francamente mais o estudo e manuseamento do abstracto das ideias e raciocínios que, uma vez percebidos, nunca se esquecem, do que propriamente “decorar”.

Na matemática os alfabetos são desmantelados e uma letra é apenas uma designação para uma variável ou uma constante, algo abstracto que se preenche com valores, uma espécie de caixinha onde se metem coisas. As equações matemáticas reduzem-se até à sua fórmula mais simples, eliminando o acessório, mas nunca deixando de ter interpretação intuitiva e até perfeição estética. Fala-se muito, na matemática e na física, de equações elegantes, e é isso que admiro também na escrita.

A minha letra é um assassinato estético e raramente assino o meu nome duas vezes da mesma forma. Aliás, não deixo de sentir uma pontinha de ridículo pelo procedimento de “assinar” algo em que a grafia seja importante, e não raras vezes tenho de repetir assinaturas recusadas por bancos, com a minha titubeante mão esquerda. Um nome, é uma designação prática para nos distinguirmos uns dos outros em abstracto, e não sinto necessidade de fazer grande alarido disso.
O português não é a minha língua materna, mas sim o francês, e comecei por ler clássicos franceses em francês, por influência da minha mãe (que é belga). Comecei depois a ler literatura americana ou inglesa, em inglês. Para mim os livros não têm uma nacionalidade, apenas um autor. Leio Becket em francês ou Philip Roth em inglês, com o mesmo gosto que leio Pessoa em português.
Li mais traduções para português, de autores ingleses, alemães ou russos, do que propriamente de autores portugueses originais, exceptuando os incontornáveis Pessoa, Saramago, Eça, Lobo etc. pelo que tenho pouco afecto pela literatura portuguesa, se é que isso existe como corpo passível de ser alvo de afecto. No entanto, adoro Portugal e é o meu país, não sou um cidadão do mundo como dizia o outro que não era ateniense. E no entanto, a minha autorização de residência e o meu BI dizem que eu sou belga.
Acontece-me não me lembrar da língua em que estou a ler um determinado texto. Por exemplo, se fecho um livro que tenho à frente dos olhos, e penso um bocadinho nele, acontece-me, no caso de autores estrangeiros, esquecer-me se o livro que tenho na mão está em português ou na versão original em inglês ou francês.

Pode ser uma desculpa pegada para justificar a minha letra horrível ou para os limites que tenho no domínio da língua, ou para a recíproca falta de afecto - ou até desprezo - que temo que a literatura portuguesa venha um dia ter por mim, mas gosto de pensar que a arte mais próxima de um arquétipo simples, é mais universal, perfeita intemporal, e eleva o homem para lá da sua condição mortal porque o liberta do acessório que está presente em tudo o resto que se faz.

E tenho de me lembrar de explicar isto aos senhores do banco, da próxima vez que assinar um papel.


4/24/2006

aeroportos (ou a incontornável genética)

«Quando eu era pequenino estive sempre fascinado por máquinas. Em certas noites de pesca, com o meu avô, os navios na doca do “Jardim do Tabaco” encantavam-me com o seu balançar misterioso. As cordas de cânhamo, grossas como troncos esticavam em sobressaltos num jogo de força que os navios travavam com a maré e os meus olhos de puto fixavam-se ora na linha do safio que entrava no negrume das águas ora na enorme massa do barco que me engolia os horizontes. Aquele monstro estava vivo pois as vigias de luz amarela deixavam-me ver tubagens e máquinas e de vez em quando um marujo. Havia sempre um ruído surdo de motor que dava vida ao navio e que me levava a imaginar viagens longínquas. Mais ou menos na mesma época não havia manhã de Domingo que o meu pai não me levasse à estação do Rossio. Estava fascinado pelas locomotivas e lembro-me mesmo de um maquinista que já me conhecia e me dizia sempre adeus lá das alturas do seu monstro. Aí o grande desafio era esperar a saída de um combóio e aguentar firme a nuvem de vapor da locomotiva quando esta arrancava.
Só mais tarde vieram os aviões, mas entretanto já se segredava na família que “havia de ser um engenheiro”...
Um dia o meu pai chegou a casa todo contente. Morávamos num andar na rua Sabino de Sousa, perto Alto de S.João. Tinha conseguido. Íamos ter uma casa de renda limitada num bairro novo. O bairro de Alvalade. Assim um Domingo levou-me a ver a casa em construção. Aquilo era campo e agradou-me logo. Salvo erro só haviam duas carreiras de autocarros, o 17 e o 21. Lá fomos ver as fundações da casa e a seguir o meu pai entusiasmou-se e levou-me por ali fora direito à avenida Rio de Janeiro, ao Pote de Água, à Rotunda do relógio e ao Aeroporto. Tinha 6 anos e apanhei uma gripe terrível e todos censuraram o meu pai por me arrastar por aquele deserto quente numa tarde de Domingo.
Esse, o da imagem antiga, foi o Aeroporto que eu vi e onde voltei muitas vezes mais tarde, pé ou de autocarro, só pelo prazer de ver os DC9 (3?), os Constellation e o s Dakota. Os aviões sugeriram-me sempre aquela libertação que eu teria se tivesse asas, e qual é o puto que não sonha voar.
Agora duvido que faça sonhar um único miúdo»

Vitor Bray (Eng.), e-mail a 24 de Abril - 2006, Torres Vedras

4/22/2006

Mandelstam vê assim a pintura

Extractos de Os Franceses, texto do poeta russo Óssip Mandelstam. Nasceu em 1891 e morreu num campo prisional de trânsito em 1938, de fome, de distrofia. Não existe o túmulo dele (uma vala comum? Um buraco na terra?); no lugar do ex-campo de trânsito erguem-se os novos bairros habitacionais de Vladivostok.
Filipe Guerra



Van Gogh, Le cafe du soir

Viva, Cézanne! Avozinho simpático! Grande trabalhador. A melhor bolota das florestas francesas.
A pintura dele é autenticada por notário aldeão sobre uma mesa de carvalho. Inabalável como testamento lavrado no pleno uso da consciência e faculdades.
Por mim, fiquei encantado com uma natureza-morta do velho. Rosas cortadas, pelos vistos, de manhã: densas, apertadas, sobretudo novas, sobretudo rosas-chá! Tal qual as bolinhas do gelado de natas amarelo.

Mas tive cá uma aversão ao Matisse, esse pintor de ricos. A tinta vermelha das suas telas escuma como bicarbonato de soda. Desconhece a alegria dos frutos a amadurar. O seu poderoso pincel não cura a vista, mas comunica-lhe uma tal força taurina que os olhos se raiam de sangue.
Esse xadrez de carpete e essas odaliscas!
Caprichos de xá chez le maître parisiense!

Henri Matisse, Danseuse dans le Fauteuil, sol en Damier, 1942

As baratuchas tintas leguminosas de Van Gogh desgraçadamente compradas por vinte sous.
Van Gogh escarra sangue, como suicida dos quartos mobilados. As tábuas do chão no café nocturno inclinam-se e fluem como calha em fúria eléctrica. A estreita tina do bilhar lembra o cepo do caixão.
Nunca vi um colorido a ladrar como este.
E que paisagens – de hortas e revisores de comboio! Acabaram de limpá-la da fuligem dos comboios suburbanos com um trapo molhado.
As telas de Van Gogh, que a omoleta da catástrofe lambuzou, são didácticas como material escolar – mapas da escola Berlitz.

Os excursionistas movem-se a passinhos curtos como na igreja.
Cada compartimento tem clima próprio. No de Claude Monet, o ar é do rio. Ao olhares para as águas de Renoir sentes nas mãos as bolhas e os calos dos remos.
Signac inventou um sol de milho.


Renoir, La Seine

A explicadora dos quadros leva atrás dela amadores de cultura. Ao vê-los, dirás: há ímanes que atraem patos.
Ozenfant inventou algo de surpreendente – com giz encarnado e lápis branco em fundo preto de ardósia – ao modelar formas de vidro soprado e de loiça quebradiça de laboratório.

Também lá estão a fazer vénias o judeu azul de Picasso e os boulevards cinzentos e carmesins de Pissarro rolando como bolas de uma lotaria enorme, as caixinhas de cabs, a levantarem canas de chicotes, e com nesgas de miolos espalhados sobre quiosques e castanhas.
Não chega?
À porta, já uma generalização se aborrece.

Gostaria de recomendar a todos os remanescentes da inofensiva peste do realismo ingénuo esta maneira de ver os quadros:
Nunca entrar no museu como numa capela. Não enlanguescer, não petrificar, não se colar às telas...
Andar como de passeio num boulevard – através!
Rachar altas ondas temperaturais no espaço da pintura a óleo.
Calmamente, sem excitação – à maneira dos tartarozinhos quando dão banho aos cavalos em Aluchta – mergulhe o olho naquele meio ambiente novo para ele – e lembre-se de que o olho é um animal nobre mas teimoso.
Ficar parado diante de um quadro com que ainda não se sincronizou a temperatura corpórea da sua vista e para a qual o cristalino não achou ainda uma acomodação simplesmente digna – é o mesmo que uma serenata de peliça vestida e atrás de janelas duplas.


Camile Pissarro, Boulevard Montmartre

Quando este equilíbrio for alcançado – só então – comece a segunda etapa de restauração do quadro, a da limpeza, a da purificação quando se lhe raspa a escuma velha da bárbara camada exterior que o liga, como a qualquer outro objecto, à realidade ensolarada e condensada.
O olho, que tem capacidade acústica [...] eleva o quadro até ao seu nível verdadeiro, porque a pintura é muito mais um fenómeno de secreção interna do que uma percepção externa.

O olho-viajante entrega à consciência as suas cartas credenciais. Estabelece-se então entre o espectador e o quadro um tratado frio, uma espécie de segredo diplomático.
Saí da embaixada da pintura para a rua.
A luz do sol, logo após os franceses, pareceu-me em fase de eclipse minguante, e o próprio sol me pareceu envolto em papel metálico. Súbito começa a última etapa da percepção do quadro – a acareação com o desígnio artístico.
À porta da loja cooperativa estava uma mãezinha com o filho. O filho era tabético e respeitador. Ambos vestidos de luto. A mulher enfiava um molho de rabanetes no ridicule.
O fundo da rua, como que esmagado por um binóculo, enroscou-se numa bolinha, e tudo isto – distanciado e falso – foi atulhado numa bolsa de malha.

1931


Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra

plano de fuga

Duvido que se tivesse de volta as 3 horas por dia que desde há quase dois anos “perco” diariamente nos transportes públicos, as aproveitaria para algo melhor do que ler, ouvir música e escrevinhar notas.
Pergunto-me se teria na escrita o que hoje tenho, que é um pouco como a água para um nómada do deserto. E também me pergunto se será mais livre o homem que pode fazer o que quer do que o outro que, com a cara entre as grades e o voo da águia reflectido na retina, congemina um plano de fuga para o amanhã.

4/20/2006

A Primavera

Eu vi um melro, de bico amarelo, ou estavam à espera de qualquer coisa original? O melro tem uma minhoca no bico, e um bando de pardais à solta, invejosos e rafeiros, saltitam em volta dele. O melro é macho. Os pardais, sabe-se lá. Agora mais profundo: o melro é símbolo do melro - um ícone, o pardal é símbolo do pardal - outro ícone. O bando de putos que passou e escorraçou a passarada parecia um bando de pardais à solta. É assim porque é Primavera e, enquanto for assim, estamos vivos. E se nos ficássemos por aqui?

4/19/2006

foto 202



Foto de Z, do http://umaporrolo.blogspot.com

Aqui no Cavalo De Tróia podemos discordar de muito entre nós mas numa coisa estamos de acordo: o Z é o nosso fotógrafo preferido.

E também achamos que é o que tira as melhores fotografias.

Contos Inacabados - JR Tolkien


Estes contos inacabados, reunidos num único livro, são um excelente vislumbre sobre o método e vida de Tolkien. Não são uma biografia, longe disso, são esboços (alguns com 100 páginas ou mais) de histórias que estão incluídas, de forma muito resumida, no Silmarillion, e que seriam a génese do que poderiam ser outros romances como o Senhor dos Anéis, Hobit ou Tom Bombadill.
Mas são esboços completos, e dificilmente se sente um corte abrupto no fim dos textos dos mesmos porque estão incluídos no fio condutor do Silmarillion. Ou seja, são raras as vezes em que efectivamente, não se sabe como a história iria acabar no fim. Falando de métodos, Tolkien tinha claramente uma estrutura macro (o Silmarillion) e depois desenvolvia pormenores na história em histórias cheias de magia e personagens ricas, como toda a trilogia do Senhor dos Anéis. O filho, que organizou estes textos ao longo de dois anos, afirma que o pai adorava contar e voltar a contar a mesma história de formas diferentes.
Tolkien pai opunha-se à publicação destes textos durante a sua vida, dizendo que o objectivo final do seu trabalho eram os livros completos, e não pedaços soltos de prosa. Sentia-se acossado pelos fãs das suas sagas, que lhe exigiam, em numerosas cartas (assustadoramente numerosas como o próprio as classificou) pormenores sempre mais completos e científicos da ficção que ele próprio criara. Botânicos escreviam-lhe para que ele elaborasse mais sobre as flores da Terra Média, linguistas pediam-lhe palestras sobre a linguagem dos elfos, antropólogos pediam-lhe mais detalhes sobre os costumes dos anões etc.
Tolkien, ao escrever, tinha consciência, sempre, de criar uma ficção o mais real, formalmente perfeita e apelativa possível para os leitores. Era o seu propósito encantar o leitor, e não misturar a sua própria existência com a de um universo a que, pelos vistos, era mais do que ficção para os entusiastas.

Aliás, parte dessa ficção foi escrita em plena II Guerra Mundial, mesmo durante bombardeamentos alemães, nas costas de manuais de procedimentos militares. Essa nota de bem contra um mal que parece impossível de derrotar, da necessidade de coesão entre os povos, passa linearmente para o mundo de fantasia que Tolkien criou.

Poderemos censurar o filho pelo aproveitamento comercial, apesar de detalhadamente anotado e explicado, de textos que Tolkien considerava imperfeitos ou redundantes.

Mas a história da literatura está cheia de bons livros que por vontade própria dos autores nunca sairiam de uma arca coberta de poeira. Estes Contos Inacabados, serão interessantes apenas para os aficionados e conhecedores de Tolkien.
Não deixa de ser encorajador ver que ele também tinha dúvidas, também escrevia 3 finais diferentes e rejeitava-os a todos, também olhava para o seu próprio trabalho com desdém crítico impiedoso, e também trabalhava em histórias ao longo de toda uma vida inteira, sem as conseguir acabar.

4/18/2006

Os ídolos e a arte de agora

Longe de mim ser um fundamentalista conservador quanto a princípios que regem e definem a arte, a criação ou o objecto artístico. Tenho as minhas convicções, umas mais arrogantes, outras mais permissivas, mas não o arrojo suficiente para afirmar em tom absoluto "isto não é arte". Há coisas que acho que são, outras que nem por isso. Depois existem outras coisas que são unanimemente aceites como objectos paralelos, situando-se num campo que contém elementos artísticos, concedo que sim, que pode acontecer, mas que assentam sobretudo num conceito de entretenimento, sem mais ambições. Até aqui, parece não haver problemas de entendimento e julgo que esta postura merece, em princípio, concordância e assentimento da parte de quem me leia. Acontece que esses objectos paralelos produzem resultados que merecem análise ou, pelo menos, atenção e uma tentativa de compreensão.

Falo disto porque passei um fim-de-semana em completa clausura, sem qualquer espécie de contacto com o mundo a que me habituei - exceptuando os contactos telefónicos pontuais com a família para saber se "estava tudo bem". E, chegado à Terra, deparei-me com um curioso fenómeno que não sei ainda sob que etiqueta hei-de guardar.

Morreu um jovem actor da série Morangos com Açúcar, da TVI. A série nunca me mereceu mais do que uns minutos de visionamento, a maior parte das vezes por resignação minha, muito mais do que por curiosidade - porquê sair de casa e ir fazer qualquer coisa se posso ficar frente à televisão sem mexer mais do que os dedos que controlam o comando, para fazer zapping e baixar o volume, e o diafragma que controla a respiração, por razões de sobrevivência? Contudo, arrisco dizê-lo: nos Morangos com Açúcar, havendo arte, será nos resíduos de qualquer coisa que não se prenda directamente com o essencial do que é - ou deveria ser - uma série televisiva: textos, interpretações e realização. E o que noto, hoje, dia em que li jornais e vi noticiários, é que este objecto paralelo deu à luz o mais recente ícone da cultura portuguesa, sob a qualidade de "actor desaparecido antes do tempo". Que desapareceu antes do tempo, ninguém duvida e muito menos contesta. A morte de um rapaz tão novo é sempre de lamentar - qualquer morte, em qualquer idade, terá sempre alguém que a lamente, julgo eu. Neste caso, lamento a morte de Francisco Adam. Só não sei como conceder-lhe o tal estatuto de "actor", de "artista".

Tudo isto me leva a uma questão: a arte dos dias de hoje. A cultura sempre teve os seus ídolos e os seus ícones. Muitos deles, ao longo dos tempos, foram efémeros. Outros conservam ainda hoje o estatuto e acredito que o percam apenas com o desaparecimento do último ser humano. Nestas coisas "da arte", o tempo é, muitas vezes, um bom juiz. Embora acredite igualmente que talvez vá cometendo algumas injustiças, deixando, aqui e ali, que a memória colectiva diminua a importância e o mérito de gente que os teve em grande escala num pretérito cada vez mais longínquo, quase imaginário. E nestas mesmas coisas "da arte" o presente é um tempo esquisito, do qual nunca se sabe bem que significado extrair, uma vez que se limita a dar-nos as coisas, assim, deixando-as diante dos nossos olhos, sem mais explicações. Suponho que em todos os "presentes", em todas as eras e todas as artes e objectos paralelos que tenham existido, hajam surgido ícones e ídolos difíceis de compreender e avaliar. Porque nós, os de hoje em dia, não somos menos aptos ou mais expeditos do que os que nos antecederam nestas coisas "da vida", em geral, e "da arte", em particular. E eu sinto que estamos hoje perante o surgimento de um destes casos de estranha idolatria. O que me leva a uma conclusão - que será temporária, porque está ainda sujeita a reformulação, revisão e actualização: nos dias de hoje, não é líquido que a arte gere ídolos; mas os ídolos de hoje em dia arriscam-se a redefinir as fronteiras e os princípios que definem a arte. Afinal, para todos os efeitos e segundo a opinião geral, Francisco Adam foi actor.

Método para escrever romances

Métodos para escrever romances não faltam, desde o Snowflake Method de um obscuro prize wining author ao mais modesto How To Write Novels, Poetry, &Other Literature, são muitas as diferentes opções mas no geral, e porque os sites são de origem americana, assentam todos numa filosofia próxima do argumento ou cinema (também ele americano).
Os métodos consistem quase sempre em fazer uma abordagem de cima para baixo. Resume-se o livro numa frase. Depois num parágrafo. Depois gasta-se uma página para desenvolver ideias. E depois, escreve-se, essencialmente, a acção, por cenas e pedaços bem delineados, podendo até, segundo uns métodos, recorrer-se a uma espécie de story board.

São sempre humildes, estes métodos, porque dizem que "é só mais um método, cada pessoa tem o seu, o meu é este" e alguns até se desculpam. Não sei se são bons porque todos, depois da parte da desculpa, acabam por pedir dinheiro para podermos ler os capítulos finais. Por isso não sei.
O problema que pude detectar entra na parte do "o meu método é este".
'O meu', de quem?

Normalmente, os escritores de livros de métodos são romancistas falhados. Existem argumentistas de cinema e televisão que, por terem uma actividade muitíssimo mais condicionada e profissional, podem efectivamente conjugar palestras ou fórmulas com criação. Temos um belo exemplo no Adaptation, de Spike Jonze, um filme recomendado para qualquer escritor ou argumentista (ou pessoa que goste de filmes)
De facto, um argumentista escreve muitas vezes por encomenda e trabalho de equipa.

Duvido que haja professores de cursos de escrita criativa capazes de ensinar alguém a escrever romances. Mas eles lixam-nos porque dizem sempre, logo à partida, que não é isso que vendem, nunca prometem resultados.
A criatividade de que se fala nesses cursos é uma criatividade inconsequente, mais próxima dos domínios da publicidade ou do programa de televisão, sem desprimor para estas actividades, mas que se resume a "ter ideias" que nunca chegam a ser exploradas ao limite e ao detalhe. Não digo, de modo nenhum, que esses cursos não tenham utilidade para, pelo menos, ensinar os alunos a ler.

Há muito de actor no escritor de romances de personagens, pois ele tem de incorporar as suas próprias personagens mentalmente, e ser capaz de as recriar com uma voz e vontade próprias, como se estivesse possuído. No meu humilde entender, Dostoiévski foi, e é, o mais perfeito nesta arte porque consegue sublimar personagens mutuamente exclusivas. Isto não faz dele o melhor de toda a literatura (por acaso acho que é mas isso não vem agora para o caso) mas simplesmente o melhor deste tipo de literatura de romance bem estruturado, com personagens e história. Parece simples mas não é. O Lobo Antunes, por exemplo, que é um grande escritor, a julgar pelos livros que li dele, tem apenas uma única personagem, com nomes diferentes. Há génios, como o Becket, que subvertem estas regras. Mas tentemos não pensar muito nos génios, ó irmãos mortais.

Posso afirmar sem medo que só aos muito bons, para não dizer geniais, é possível escrever sem método e disciplina. De resto, qualquer pessoa, mesmo, tem capacidade para escrever um romance, desde que tenha método e paciência. Pode não sair um bom livro, mas sai qualquer coisa. E isso, com diria La Palisse, já é qualquer coisa.

De artistas sem obra, está a blogosfera cheia.


*Um repto ao Filipe Guerra: E o Dostioévksi? Tinha método?

4/14/2006

Ah, Mia Couto, que me andaste a enganar!

Fiz uma das minhas figuras mais tristes quando, finalmente, fui a África, a Maputo. Mas isso conto depois, agora os antecedentes.
Nunca pus os pés em África, sequer em Marrocos. Na infância nunca tive nada a ver com África, nunca tive família a colonizar a África, fosse militar ou civil, nunca beneficiei de África; a África, no fundo, nunca me disse nada, nem eu a ela. Enfim, só aquelas coisas da escola, a história, o Camões, o Gungunhana, o Serpa Pinto, desculpem, apenas nomes. Nos meus 8-9 anos conheci, isso sim, numa quinta de Chaves, uma gente muito rica de Angola, a que nós chamávamos os pretos, desculpem, e não posso esquecer o carinho com que aquela senhora diferente, porque mulata, cúmplice e calorosa, nos fazia e nos dava as sandes de marmelada com queijo e o sumo fresco, era no Verão. Depois, à noite, apaixonei-me sem consequências pela pretinha Camília. Era uma menina tão fresca que ainda cheirava a lá fora depois de estarmos uns dez putos a jogar o loto durante duas horas no quarto abafado da avó que andava em viagem. E eu muito corado, sempre ao pé dela. Aos 8-9 anos não se falha na apreciação sentimental das pessoas e das coisas, e para eu ter guardado na memória a cena das sanduiches... E, quanto a África, era tudo, tirando o facto de ser nossa, isso toda a gente veio a saber vagamente mais tarde quando apareceram uns terroristas, mesmo nossos, na nossa África, o que já não era tão vago porque começaram a matar os nossos soldados e não tardou a haver certos dramas nas famílias conhecidas. Aos 12-13 anos, eu e outro galfarro da minha idade cometemos um acto tão grave de banditismo que, com medo das respectivas famílias, decidimos fugir para França, e não para África. Não passámos do posto fronteiriço, a 9 quilómetros de Chaves, depressa nos foram buscar de táxi. Foram passando os anos da parva adolescência, chegou a juventude e eu, para fugir de África, fugi para França. Em França sim, conheci muitos africanos e africanas. Mas, de África, continuava a ser tudo. Deu-se o 25 de Abril, voltei a Portugal, não arranjava trabalho porque tinha prioridade a vaga de retornados, desculpem, já que haviam chegado de África com as mãos a abanar, e era justo, era o preço a pagar pela colonização e respectiva descolonização. Fugi para França.
Farto de fugas, encontrei lugar em Portugal, já quase grisalhadultando ligeira e respeitavelmente das têmporas (ah, Mia Couto!) e, como toda a gente, resolvi ser escritor. Falhei porque não sabia nem sei escrever à escritor, e tinha mais que fazer – trabalhar, por exemplo –, mas, sobretudo, porque me faltava o elemento África imprescindível, aqueles pores de sóis, aquele nosso virar para fora da nossa identidade, e ainda por cima o meu ídolo era António Lobo Antunes que respira África por todos os poros. Nada a fazer, mas confesso que guardei um rancorzinho a África por ela não se me dar a conhecer e me impedir de singrar como escritor. Mas até esse rancorzinho passou quando vim a saber que pessoas que muito estimo, como a senhora Bárbara Guimarães e a senhora Maria Rueff, afinal eram africanas.
Jurei então que havia de ir a África, que havia de colmatar esta lacuna, abafar este sentimento de culpa, e preparei-me, decidindo fazê-lo o mais turisticamente e o menos colonialmente possível, embora não desconhecesse que o turismo era uma forma de colonialismo moderno. Como turista despercebido fui, então, a Moçambique, Maputo.
E foi em Maputo que fiz uma triste figura. Tinha-me preparado para ir o mais amigavelmente e o menos colonialmente possível. E como me preparara eu? Pois bem, tentando haurir o português de Moçambique dos livros do moçambicano Mia Couto, logo-logo relenlendo-o e me rendendo. Depois, lá aterrado, desalfandegado e com os tudo-em-ordem na carteira descansada, era só comunicar com os moçambicanos de olhos no coração e o dito nas mãos, pensava eu. Logo nas formalidades meti água ao declarar que passapapel é bom porque fronteira arde como o dito e tu passas por cima. O olhar dos alfandeguistas só dizia «olhó maluco». Devo dizer antes de avançar que no avião eu mamara maningue uísque não só da companhia mas do frasco achatado que trago no bolso traseiro porque: quem não tem medo de voar? Lá passei, mas o pior foi no hotel.
Abrevio: riram-se de mim abertamente quando disse «boas as tardes e tudo bem mas há um porém: toda a minha bagagice me sumiu». Mia Couto, meu satanhudo, não és culpado de tudo, já Guimarães Rosa, o cafageste, me fizera passar por vergonha semelhante quando fui visitar o Nordeste brasileiro e me pus a falar com os nordestinos talqualmente ele escrevia. Bem, as gerências e as empregâncias do hotel não me entendiam e eu não os entendia já que me falavam, parece, em inglês. Usámos então a linguagem do coração e do álcool, e também da gorja forte, num português menos bem amanhado do que o de Mia Couto, e lá nos entendemos e convivemos. De Moçambique gostei, é um país, tem o carácter de um já país, embora pobre e embora nas machambas, que também fui ver, a realidade da coisa não corresponda à solenidade da palavra. É um país mas não é para turismo, apesar da Ilha de Moçambique, e quem viu um pôr de sol viu todos, é antes um país para viver e para isso é preciso ser-se de lá ou tornar-se gente de lá, coisa que os cooperantes, com quem também me enfrasquei repetidamente, jamais alcançarão porque são ricos, peço desculpa. Para o ano vou a Cuba, mas digo já que, para gajas, o Brasil é o melhor.

Combater o tédio e a impaciência

Quando era criança costumava sentir tédio. Hoje procuro essa mesma sensação mas já não consigo. Quando muito sinto impaciência nervosa, como aquela se sente ao ver um mau jogo de futebol, mas nunca o tédio, esse não.
O meu tédio tinha razões de ser. Passava intermináveis fins de semana num pequeno casal (o Casal Sobrigal), numa aldeia chamada Carreiras, a 12 km de Torres Vedras, onde nem sequer telefone tinha e o meu computador, um avançadíssimo Schneider Euro PC, ficava a hibernar no apartamento de Torres Vedras.

Os amigos, no Casal Sobrigal, eram poucos mas bons, só que por vezes não estavam em casa, recrutados para os trabalhos agrícolas ou de restauração na Quinta do Hespanhol.
Quando tinham folga, por exemplo ao Domingo, iam visitar a família ou iam à missa, ou iam, imagine-se, à praia… Os meus pais faziam tudo ao contrário, e não sem algum sentido de lógica. Ao Sábado íamos à praia umas horas, passando pelo Intermarché outras tantas horas, e no Domingo, ficávamos em casa, pois havia filas intermináveis para ir para a praia. Acresce que os meus pais não eram católicos (e eu, curiosamente, também não), o que nos arredava da participação activa das festas religiosas e da missa, o ponto alto de convivência social da aldeia.

Para mais, ao Domingo, mesmo no Inverno, os meus amigos vestiam-se a rigor e não estavam propriamente virados para uma futebolada no empedrado da rua, sob pena de saírem do campo por ordem imperativa das mães, suspensos pelas orelhas.
Não pensem que esta situação se alterou depois dos meus 15-16 anos.
Continuei sempre a sentir tédio, até tirar a carta de condução, aí aos 23, que me permitia, simplesmente, fugir!

Mas até bem tarde, e sempre que ficava naquela espécie de sanatório-misto-de-exílio-rural, não me sobrava outro remédio senão remexer nos livros da minha mãe e procurar coisas que não agravassem ainda mais o meu tédio. Por isso tinha que escolher muito bem os livros. Nada de Prousts e À La Recherche du Temp Perdu. Já agora, o livro que mais assentou na minha situação foi precisamente A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Eu no cadeirão de praia de fibra sintética do Intermarché, e o Hans Castorp na sua excelente chaise longue do sanatório na montanha, ambos convalescentes.

A literatura era uma questão de sobrevivência mental.
Tiveram de passar alguns anos até que voltasse a ler de forma regular e diária.
Agora tenho a sorte de passar quase três horas por dia em transportes públicos, de Torres Vedras para Lisboa, onde trabalho, e depois de Lisboa para Torres Vedras.
Tentem não sentir inveja de mim, por ter essas três horas numa cadeira confortável, enquanto o meu chofer particular me conduz pela A8.

Não leio para combater o tédio, mas sim a impaciência de uma viagem longa.
O tédio, esse, nunca mais o senti, e isso explica porque ando a ler o Livro do Desassossego há mais de um ano e ainda vou a meio.

4/13/2006

Malone

Da primeira vez que peguei n' O Inominável não estava pronto para o segurar nas mãos. Estranhei-o, primeiro, e não lhe liguei nenhuma, logo de seguida. Como acontece com muitos dos volumes que se espalham pela casa com marcadores que, de tão esquecidos, já não marcam coisa alguma, O Inominável deve permanecer lido e devidamente ignorado algures até à vigésima página. Quem diz vigésima diz trigésima, tal como poderia dizer quinta ou sexta. No fundo, está por ler e é isso que importa.

Mais recentemente, cruzei-me de novo com Beckett numa livraria qualquer. Sem pudor nem censura, pensei "acho que conheço este gajo" e ainda hoje sinto algum desconforto por isso. O título do livro, Malone Está a Morrer (Malone Meurt, no original), ficou-me na cabeça. "Mas o que é que um gajo que está a morrer tem de interessante?" Desinteressado, comprei.

Devo ter demorado mais de um ano a ler aquelas 170 ou 180 páginas. E só as lia durante viagens longas de comboio, especialmente Lisboa - Porto e Porto - Lisboa. Malone Está a Morrer não é apenas uma obra de génio. É o refúgio, a alienação que qualquer ser humano procura. É a cabeça decrépita de um velho inapto, incapaz, acamado, indagador e divagador. É aquilo que qualquer pessoa consegue ser.

Durante as muitas estações - as do ano e as de comboio - que a leitura de Malone atravessou, fui viajando por dentro da sua e da minha humanidade singela, com toda a maldade, desprezo e compaixão que um ser humano é capaz de ter e sentir. Beckett percebeu e soube explicar que uma pessoa pode ser apenas aquilo que Malone foi - ou ainda é; não garanto que Malone tenha morrido de facto. A verdade - e era isto que queria dizer desde o início do texto, mas entretanto perdi-me - é que nunca quis acabar de ler este livro e é bem provável que volte a lê-lo. Mas só depois de encontrar O Inominável. Julgo que talvez o leia também.




Hoje comemoram-se os cem anos do nascimento de Samuel Beckett.

A mestria de Tchékhov contista

Tchékhov atingiu a perfeição, se isso é possível, nos últimos contos que escreveu. Teria ele encontrado a forma natural de contar por escrito? Em A Minha Vida – história contada por um provinciano descreve a revolta de um jovem fidalgo, órfão de mãe, que vive numa cidade da província russa com um pai conservador e tirano e uma irmã submissa e oprimida que apoia o pai e substitui a falecida mãe no governo da casa: imagem da reprodução do papel subalterno da mulher. A revolta do herói consiste em repudiar os sucessivos trabalhos «limpos» e burocráticos próprios da sua condição nobre e ir para trolha – suprema vergonha social. O rapaz sai de casa e vai viver para a da antiga ama-seca. Entretanto, a irmã vai dando indícios de que a revolta também germina nela. Nesta fase do conto, os termos de Tchékhov são contidos e simples, a voz é baixa e calma, o verbo é banal. As personagens nunca empreendem ou executam, fazem; não proferem, exclamam ou gritam, dizem, mas mesmo assim vamos detectando a revolta surda da irmã (a arte da alusão, em que tem mais importância a cor de um lenço, o pormenor banal de um quarto ou de uma paisagem do que uma tirada filosófica ou um diálogo profundo). Um dia ela vai visitar o irmão e a sua revolta explode. Tchékhov di-lo a gritar? Não. Gasta vinte páginas como faria um talentoso contista ou romancista? Não. Fá-la executar um gesto que nunca se esperaria dela, limita-se a pô-la a atirar um molho de chaves contra a porta do quarto do irmão, e depois, em seis linhas, diz tudo. Mas «as palavras são de fogo», como disse Tolstói, que aspirava a imitá-lo. Assim:

Atirou com as chaves contra a porta, foram parar ao meu quarto com estardalhaço. Eram as chaves do aparador, do armário, da cozinha, da cave e da caixa do chá – as mesmas chaves que, dantes, a minha mãe trazia sempre consigo.
Antes de voltar para casa, a minha irmã entrou no meu quarto para apanhar as chaves e disse:
– Desculpa. Ultimamente passa-se qualquer coisa estranha comigo.

4/11/2006

Silmarillion, ordem e caos.

Curioso, tendo terminado o Silmarillion, calhou ver este texto de JPP, no Abrupto:
NUNCA É TARDE PARA APRENDER: HOMENS, NAVIOS E SOCIEDADE

Recomendo a sua leitura prévia completa., mas ficam aqui dois parágrafos que julgo exemplificativo do que JPP diz a propósito de um filme de guerra ingles de David Lean e Noel Coward :

«dentro do navio e fora dele o sistema de convenções permanece intacto. O comandante sabe de cor todos os nomes da sua tripulação, de que tem que cuidar até ao limite da sua vida, mas entre ele e os seus marinheiros há deferência e respeito, há hierarquia»

«Nenhum americano ou francês poderia fazer este filme sem que aparecessem dois sentimentos(…) os americanos não deixariam de retratar a pulsão democrática para cima (…) e os franceses não deixariam de ridicularizar os seus nobres,»


Bom, não conhecendo a escrita e as opiniões de JPP poderia ficar intrigado sobre se é um defeito que aponta aos ingleses, ou antes uma virtude, mas como conheço e todos conhecemos, suspeito que é uma virtude

De facto, já me tinha apercebido desta tendência para admirar autoridade e a hierarquia em Joseph Conrad, um dos meus escritores preferidos e em Tolkien.

Falemos de Tolkien.
Em Tolkien há reis. Reis que são reis por direito divino e inquestionável. Reis que são bons e justos e outros que são maus e tirânicos. Mas, mais do que reis, há uma hierarquia de raças. Existem elfos (superiores), anões (inferiores), orcos (muito inferiores), homens (assim assim) e existem imortais, os valar, que são uns deuses na terra, embora não intervenham directamente, a não ser que estejam para aí virados, um pouco como os deuses gregos.

As gradações de hierarquia em longevidade e saber, são mantidas rigidamente. A convivência pacífica de povos diferentes é boa, e é sempre vista como proveitosa, pois os elfos ensinam aos anões a arte das jóias e estes aos elfos a arte do ferro.

Em todo o universo tolkiano, o mal estava previsto logo à partida, e as destruições e cataclismos sucedem-se, sempre com uma primavera subsequente, como se fossem o curso normal da vida. O que diria Voltaire, esse… esse… francês, se lesse Tolkien?

Em Tolkien, a raiz de todo o mal do mundo são a ambição de transgredir a própria condição inferior ou mortal, e a falta de memória da história.

Melkor (ou Morgoth), aquele que é responsável pela origem do mal, ficou com ciúmes de Yavanna e desafinou no canto primordial, procurando instaurar a desordem no coro de vozes.
O mal não tem existência física, propriamente dita. Nunca, ou raramente, ataca pela força bruta contra um adversário forte. Lança antes uns contra os outros, irmãos contra irmãos, aliados contra aliados, pela palavra hábil de Sauron que toma várias formas (belo e honrado conselheiro, morcego etc.), ou, depois da semente do mal estar plantada, do ciúme, da inveja, da cobiça, da humilhação ou do orgulho desmedido.

Em Tolkien, a característica mais “prezada” é a nobreza de sentimentos, a fidelidade e a coragem. E há sempre “desastre” quando alguém não cumpre a palavra.

No entanto, e antes que se pense que Tolkien é uma espécie de conservador bacoco (como já ouvi rotulado o grande Joseph Conrad), saiba-se que em todas as classes há heróis e maçãs podres. Aliás, o maior feito de toda a história do Silmarillion, e da Terra Média, foi conseguido por Beleg, um simples homem, que por paixão a uma elfa filha de reis, conseguiu a tarefa impossível de roubar um silmaril da coroa de melkor. Tão grande foi a sua coragem, que viajou para a ilha dos deuses valar, à semelhança do que vemos Frodo fazer no fim da saga do Senhor dos Anéis.

O homem é o ser mais facilmente corrupto de todos.

Questiona duramente a sua condição de mortal porque existem deuses imortais a partilhar a terra com eles.
O homem torna-se temeroso da morte e constrói túmulos e conserva-se depois de morto (referência aos faraós) e fica obcecado pela reencarnação (uma das críticas interessantes e subtis às religões dos nossos dias).

Como se torna impaciente, quer viver a vida o mais rápido possível, cometendo excessos, e adoece, o tempo de vida encurta, e o tempo de vida, passa-o temendo o fim, com medo, numa contínua esquizofrenia.

Recorde-se que, de acordo com a cronologia, estas acções ocorrem num tempo muito anterior ao início do mundo como o conhecemos e que termina no fim do Senhor dos Anéis, com a era do Homem, depois deste ter desafiado os Deuses que lançam sobre eles um dilúvio e encurvam a Terra, para que mesmo navegando, os homens voltem sempre ao local de partida.

É credível, digo-vos, bastante credível. O que é certo, é que tal trabalho de dramas épicos apresentados de forma serena, maturada e límpida, em que os indivíduos são tudo e as acções individuais podem mudar o mundo, só poderia vir da terra que já nos deu o McBeth e o James Bond.

Sobre o nome: sob o nome

Não sei se o meu próprio nome me assusta ou se eu mesmo me deixo tolher e encolher, recusando-me a assumir em nome próprio um monte de coisas que costumo pensar e sobre as quais tenho opinião que julguei bem formada. Nem mesmo sei se as personagens que crio, quais heterónimos pessoanos, têm muito mais conhecimento e imaginação do que o eu ortónimo que ora escreve. Só sei que tinha muito mais ideias sobre o que queria escrever, criticar, pensar ou debater quando não assinava, por outros blogues, desta maneira, com este nome. Talvez se deva ao medo de, um dia destes, poder dar-se o caso ir na rua e ouvir algo do género "ah!, lá vai o Diego, aquele pateta que escreve aquelas parvoíces no Cavalo de Tróia"; ou, pior ainda, ao receio se ser vítima do assédio de leitores assíduos deste blogue que, fazendo uso da clássica falta de sentido de oportunidade, me hão-de pedir conselhos, opiniões, sugestões, quiçá autógrafos, em situações bizarras - de pé e apertado, no autocarro 12; no multibanco, enquanto faço pagamentos para contas com muitos números; no talho, enquanto penso introspectivo que "devia reduzir na carne de porco".

A verdade é que usar o próprio nome na blogosfera é mais desconfortável do que usar um pseudónimo - por mais anónimo que o nome próprio seja. E está a custar-me habituar a esta nova realidade.

"O Silmarillion" - JR Tokien (9/10)



O Silmarillion de JR - Tolkien consiste numa colecção de lendas e histórias que relatam um tempo primordial, desde a origem do mundo até ao fim da 3ª era (depois dos acontecimentos relatados no Senhor dos Anéis).
Contém o que se pode considerar o núcleo de toda a mitologia Tolkien que começou a escrevê-lo em 1917 (antes de todos os outros) e continuou sempre a trabalhar nele toda a vida. O filho, Christopher Tolkien, editou-o quatro anos depois da sua morte, em 1977.
Sempre que aplicam "universo" para caracterizar o conjunto ficcional de algum autor como o 'universo becketiano' ou o 'universo paul austeriano', referem-se mais propriamente a uma "atmosfera" semelhante que impregna todos os seus livros, e até a personagens que aparecem em vários.

Em Tolkien, um universo é um Universo.
É aí, em minha opinião, que reside o maior encanto do género de literatura fantástica' de dimensões épicas, mais comum ainda no género ficção científica de que os 6 episódios da saga da Guerra das Estrelas são o exemplo mais conhecido.

Tolkien constrói, com o Simarillion:
Um esqueleto filosófico; a noção de bem e de mal, de mortalidade, de arte.
Um plano espacial geográfico; desenha mapas, dá nomes a rios, montanhas e vales imaginários.
Um fundo mitológico e teológico; cria os seus deuses, que criam os seus seres e a sua história, com valores intrínsecos e particulares.
Uma linguagem e cultura própria; Tolkien desenvolve toda uma linguagem élfica, com variações consoante os povos e as eras, e também cria uma cultura artística de referências próprias.

Garante assim uma coerência narrativa extraordinária num mundo imaginado de raiz, e por raiz, entenda-se, com influências de Shakespeare, Bíblia, Homero, mitologia grega e celta.

Quem faz um romance histórico tem a história da humanidade para se situar e fazer investigação por forma a dar textura palpável ao contexto de uma história.

Tolkien faz romances históricos com O Hobit (10/10) ou a trilogia do Senhor dos Anéis (10/10) num contexto histórico que ele próprio cria. São esses romances o fruto do seu génio e estão, curiosamente, no meu ponto de partida literário, contando-se entre os primeiríssimos livros que li e de que, até hoje, me lembro do impacto tremendo que tiveram em mim.

O Silmarillion, mais adulto e contido, é um trabalho que resulta da recolha e organização de textos de um artífice paciente e dedicado, escritos ao longo da longa vida de Tolkien, mas sempre cheios de fantasia e imaginação, como se fora uma criança a escrevê-los.

Depois de apresentado o livro, irei abordar algumas ideias filosóficas e teológicas do universo de Tolkien.

4/10/2006

Palavra de estreante

No endereço que aqui deixo, encontram-se certas curiosidades que julgo adequadas para ilustrar esta minha primeira intervenção no Cavalo de Tróia. Admito que este texto padece, enquanto prosa de estreia, de uma certa preguiça. Porém, não resisti a certas passagens da página que atrás indiquei. Exemplo:

Some people seem born with a knack for rhyme, an instinctive ear. Most of the rest of us must work at it if we want to write natural-sounding verse. Some ways of doing this are:

1. Extend your vocabulary. Play with the dictionary, learning new words and finding rhymes for them.
2. Read out loud and listen for the sound of words.
3. Read good rhyming poetry, from Ogden Nash to Yeats -- out loud.
4. Listen to all of the sound patterns in poetry, not just echoes at the end of words. Similar starting sounds are called alliteration; echoing tones in the vowel sounds are called assonance; frequent occurrence of echoing consonants (the letters that aren't vowels) is called consonance.
5. Using rhymes flexibly can keep them from being "boring." Rhymes do not have to be moon/spoon. You can try "near rhyme," like rhyming "moon" with "on" or "loaf" with "rove".


Mas o que mais me fascinou foi o exercício de aquecimento:

My own favorite "warmup exercises" are:

1. Pick six words at random and connect them.
2. Ask someone else for a first-line challenge.
3. Parody something; I'm studying sonnets by reworking Shakespeare and Wordsworth.
4. Take a walk and just write about it.

Vou experiementar as dicas e ver se resulta.

4/09/2006

Desassossego

Para transmitir ao leitor a ideia da súbita melancolia que por vezes o assola, Bernardo Soares escreve que precisa de recorrer às saudades da infância como metáfora para que os leitores entendam a sua sensação.

Então escreve um texto sobre a infância perdida e encontra aí um elo universal com todos os leitores porque, todos os leitores, em princípio, suspirarão por uma infância perdida e ao ler o texto irão compreender esse sentimento. Supõe-se que só a alguns desassossegados calha serem acometidos de melancolias pessoanas súbitas e inexplicáceis, como achaques e arrepios de almas asmáticas ou epiléticas.

No entanto, Bernardo Soares é ele próprio uma personagem, e o que acaba por ser transmitido ao leitor é a ideia de que somos acometidos de súbitas melancolias que não conseguimos exprimir ou explicar aos outros.

E mesmo assim, isso é universal. É por isso, talvez, que o Livro do Desassossego não deixa ninguém indiferente, pois apela ao universal criando a sensação de que somos os únicos desassossegados, gerando em nós uma empatia genuína por aquele Bernardo Soares que não tem amigos nenhuns a não ser o leitor, naquele momento.

Os melhores escritores, para mim, são pois aqueles que me inspiram simpatia, uma genuína vontade de os conhecer. Não creio que haja muito de racional nisso e ainda bem.

A Itália escura

Decorrem as eleições em Itália, estou em pulgas. Isto não é política, é apenas o primeiro verso de um longo poema, que também os sei hacer. Por falar em versos, deixo aqui dois de um poema de Óssip Mandelstam, um dos maiores da Rússia:

Frio na Europa. A Itália escura.
Viscoso é o poder, como mãos de barbeiro.

4/08/2006

início

Agora é esperar que os troianos da blogosfera nos tomem por um presente de rendição e nos acolham nas suas muralhas.